domingo, 27 de setembro de 2009

Levantado do Chão (3)


Para não faltar ao outro sabido costume, a António Mau-tempo mal lhe pesa o farnel que leva para o dia todo, um banquete de meio carapau e um bocado de pão de milho. Logo ao sair de casa, carapau viste-lo tu, porque há fomes que não podem esperar, e esta é velha. Fica o pão de milho para o resto do dia, migalho agora, logo migalho, escarrapatada (raspada) a côdea com mil cautelas para que nem um cibozinho (pequena porção, migalho) se perca entre as ervas do chão, onde as formigas, de focinho no ar como se fossem cães, desesperam de abastecer o celeiro com tais sobras e desprezos. Parava-se o maioral num arneiro, em sua autoridade de maioral, e punha-se aos gritos. Ó rapaz, vai além àquele lado,, ó rapaz, ampara aí os animais, e António Mau-Tempo, vassourinha de varrer, girava em redor da vara com se fosse, ele, cão de pastor… (Pág.87)

Que os trabalhos de homem são muitos. Já ficaram ditos alguns e outros agora se acrescentam para ilustração geral, que as pessoas da cidade cuidam, em sua ignorância, que tudo é semear e colher, pois muito enganadas vivem se não aprenderem a dizer as palavras todas e a entender o que elas são: ceifar, carregar molhos, gadanhar, debulhar à máquina ou a sangue, malhar o centeio, tapar o palheiro, enfardar a palha ou o feno, malhar o milho, desmontar, espalhar o adubo, semear cereais, lavrar, cortar, arrotear, cavar o milho, tapar as craveiras, podar, argolar, rabocar, escavar, montear (caçar no monte), abrir as covatas (buracos fundos para os bacelos) para estrume ou Bacelo, abrir valas, enxertar as vinhas, tapar a enxertia, sulfatar, carregar as uvas, trabalhar nas adegas, trabalhar nas hortas, cavar a terra para os legumes, varejar a azeitona, trabalhar nos lagares de azeite, tirar a cortiça, tosquiar o gado, trabalhar em poços, trabalhar em brocas e barrancos, chacotar a lenha, rechegar (prender os animais aos arados com os arreios), enfornar, terrear (limpar os terrenos das ervas daninhas), empoar e ensacar, o que aqui vai, santo Deus, de palavras, tão bonitas, tão de enriquecer os léxicos, bem-aventurados os que trabalham, e que faria então se nos puséssemos a explicar como se faz cada trabalho e em que época, os instrumentos, os apeiros (apetrechos de lavoura), e se é obra para homem ou para mulher e porquê… (Pág.90)

Um dia, se não desistirmos, saberemos todos que coisas são estas e a distância que vai das palavras que as tentam explicar, a distância que vai dessas palavras ao ser que as ditas coisas são. Só escrito assim parece complicado.
Também complicada, por exemplo, parece esta máquina, e é tão simples. Chamam-lhe debulhadora, nome desta vez bem posto, porque precisamente é isso que faz, tira os grãos da espiga, palha para um lado, cereal para outro. Vista de fora, é uma grande caixa de madeira sobre rodas de ferro, ligada por uma correia a um motor que trepida, retumba e, com perdão, fede. Pintaram-na de amarelo gema de ovo, mas a poeira e o sol bruto quebraram-lhe a cor, e agora mais parece um acidente do terreno, ao lado doutro que são os frascais (palheiros), e com este sol nem se distingue bem, não há nada que esteja quieto, é o motor a saltar, a debulhadora a vomitar palha e grãos, a correia frouxa a oscilar, e o ar vibrando como se todo ele fosse o reflexo do sol num espelho agitado no céu por mãozinhas de anjos que não têm mais que fazer. Há uns vultos no meio desta névoa. Estiveram todo o dia nisto, e ontem, anteontem, e mais para trás, desde que a debulha começou, são cinco, um mais velho, quatro de pouca idade, que para esta violentação não deveriam bastar os dezassete, dezoito anos que têm. Dormem na eira, na revessa (junção) dos fardos, mas é noite fechada quando o motor se cala e ainda vem longe o sol quando se ouve o primeiro tiro daquela besta que se alimenta de bidões dum líquido preto e pegajoso, e depois, todo o santo dia, diabos o levem, matraqueia os ouvidos. É ele que marca a cadência do trabalho, a debulhadora não pode mastigar em falso, dá-se logo por isso, vem o capataz de resguardo e brama. A boca da máquina é um vulcão para dentro, um gasgarro (boca enorme) de gigante, e é o mais velho dos cinco que mais tempo a alimenta. Os outros fazem subir os frascais , giram como doidos naquela perdição de palha miúda, levam o trigo seco e áspero, os caules rijos, a espiga barbaçuda, o pó, onde vai já o verde tenríssimo da seara quando é primavera e a terra parece realmente o paraíso.
A água que se bebe do quartão (a quarta parte de um almude, ou seja de 25 litros) não tarda que fique mole, doentia, como se eu agora a estivesse a beber de um brejo, de borco, quero lá saber de vermes e bichas, que é esse o nome que damos aqui às sanguessugas… (Pág100)

Quem vive na cidade criou-se com desconfianças, por dá cá aquelas palhas exige logo provas e juramentos, é mal feito, devemos acreditar nas coisa como nos são ditas, foi o caso daquela vez em que António Mau-Tempo, já então proprietário da agora falada espingarda de carregar pela boca, tinha pólvora para a carregar, mas faltava-lhe o chumbo. Era então a época dos coelhos, tem de dizer-se já, para que não apareça aí alguém a perguntar por que não usava António Mau-Tempo o sistema da pedra, da pimenta e do jornal como fazia para as lebres. Só ignorantes da arte da caça não sabem que os coelhos são bichos sem qualquer espécie de curiosidade, ver um jornal no chão ou uma nuvem no céu, para eles é tudo o mesmo, salvo que da nuvem chove e do jornal não, por isso não se pode dispensar a espingarda ou o laço ou o pau, mas agora estamos a falar de espingardas.
Não há decerto maior desventura do que esta de ter o caçador uma boa arma, mesmo de pederneira, pólvora em quantidade, e faltar-lhe o chumbo. Porque é que não o foi comprar. Não tinha dinheiro, esse é que era o mal. Então como é que fez? Primeiro não fiz nada, pus-me a pensar. E descobriu ? Descobri, pensando descobre-se sempre. Explique-me lá como é que resolveu a dificuldade, sempre estou para ver. Tinha aí um cartucho de cardas para as botas e carreguei com elas a espingarda. O quê, carregou a espingarda com cardas? Sim senhor, se calhar não acredita. Acredito, porém nunca tal ouvi. Alguma vez terá de começar a acreditar naquilo que nunca ouviu. Conte lá então o resto, Já eu ia no campo quando me veio uma ideia que esteve quase a fazer-me voltar para trás. O quê? É verdade, lembrei-me de que um coelho apanhado pela carga de cardas ia ficar feito numa pasta de sangue, todo esfrangalhado nem se ia poder comer. E daí, pus-me outra vez a pensar. E descobriu? Descobri, pensando descobre-se sempre, coloquei-me na direcção de uma árvore de tronco grosso que ali havia e esperei. Esperou muito? Esperei o que foi preciso, nunca se espera demais nem de menos, até que veio o coelho, sim senhor, assim que deu por mim largou a correr na direcção da árvore, eu tinha estudado o terreno, e quando ele passou rente, trás, lá vai o tiro. Então não ficou esfarrapado? Qual quê, para que é que eu tinha estado a pensar, não me dirá? As cardas apanharam-no pelas orelhas e pregaram-no ao tronco da azinheira, era uma azinheira, por sinal. Essa é boa. É boa, é, foi só dar-lhe um soco no cachaço e tirar as cardas, que até quando comi o coelho já tinha as botas cardeadas de novo.
São os homens feitos de maneira que mesmo quando mentem dizem outra verdade, e se pelo contrário é a verdade que querem lançar da boca para fora, vai sempre com ela uma forma de mentir, mesmo não havendo o propósito… (Pág.284)

Então outra voz, vem dali, sobre a sombra da noite cai uma sombra que não se sabe donde vem, que ideia lhe lembrou, não está a falar das oito horas de trabalho nem do salário de quarenta escudos, estes é que são os assuntos para que a reunião foi convocada, porém ninguém tem alma de interromper. Eles sempre quiseram baixar-nos a dignidade, e ouvindo eles todos entendem o que foi dito, eles são a guarda, a pide, é o latifúndio e seu dono Alberto ou Dagoberto, o dragão e o capitão, a fominha de dentes e o osso partido, a ânsia e a quebradura. Quiseram baixar-nos a dignidade, não pode ser mais assim, tem de acabar, ouçam todos isto que aconteceu comigo e com o meu pai que já morreu, foi um segredo de nós dois, mas hoje não posso ficar calado, se os camaradas não se convencerem com este caso, então não há mais nada a fazer, estamos perdidos. Uma vez há muitos anos, estava assim uma noite escura como esta, o meu Pai foi comigo, fui eu com ele apanhar bolotas para comermos, não havia nada em casa....já tínhamos o taleigo quase cheio apareceu a guarda...e disse, não vale a pena dizer o que eles disseram, já nem me lembro bem, chamaram-nos nomes... disseram que podíamos ficar com a bolota, mas com uma condição, brigarmos um com o outro para eles verem, e então o meu Pai respondeu que não ia brigar com o seu próprio filho, mas eles disseram que sendo assim íamos para o posto, pagávamos a multa e talvez levássemos uns aconchegos pelas costas abaixo... e então o meu Pai respondeu que estava bem, íamos brigar...e então o meu Pai deu-me um encontrão, e eu a fingir deixei-me cair, era a ver se os enganávamos, julgávamos nós, mas eles disseram que ou brigávamos a sério, a aleijar, ou íamos presos... o meu Pai ficou desesperado, e bateu-me, doeu-me tanto, não foi a força da pancada, e eu dei-lhe troco da mesma maneira, e daí a uns minutos andávamos a rebolar pelo chão os guardas riam como uns perdidos, e uma vez que pus a mão na cara do meu Pai senti-a molhada, não era suor...
Quando demos por nós estávamos sozinhos, os guardas tinham-se ido embora, acho eu que por desprezo, era o que merecíamos e então o meu pai começou a chorar e eu embalei-o como se ele fosse uma criança, jurei que nunca haveria de contar a ninguém, mas hoje não podia ficar calado… (Pág. 336)




Para não faltar ao outro sabido costume, a António Mau-tempo mal lhe pesa o farnel que leva para o dia todo, um banquete de meio carapau e um bocado de pão de milho. Logo ao sair de casa, carapau viste-lo tu, porque há fomes que não podem esperar, e esta é velha. Fica o pão de milho para o resto do dia, migalho agora, logo migalho, escarrapatada (raspada) a côdea com mil cautelas para que nem um cibozinho (pequena porção, migalho) se perca entre as ervas do chão, onde as formigas, de focinho no ar como se fossem cães, desesperam de abastecer o celeiro com tais sobras e desprezos. Parava-se o maioral num arneiro, em sua autoridade de maioral, e punha-se aos gritos. Ó rapaz, vai além àquele lado,, ó rapaz, ampara aí os animais, e António Mau-Tempo, vassourinha de varrer, girava em redor da vara com se fosse, ele, cão de pastor… (Pág.87)

Que os trabalhos de homem são muitos. Já ficaram ditos alguns e outros agora se acrescentam para ilustração geral, que as pessoas da cidade cuidam, em sua ignorância, que tudo é semear e colher, pois muito enganadas vivem se não aprenderem a dizer as palavras todas e a entender o que elas são: ceifar, carregar molhos, gadanhar, debulhar à máquina ou a sangue, malhar o centeio, tapar o palheiro, enfardar a palha ou o feno, malhar o milho, desmontar, espalhar o adubo, semear cereais, lavrar, cortar, arrotear, cavar o milho, tapar as craveiras, podar, argolar, rabocar, escavar, montear (caçar no monte), abrir as covatas (buracos fundos para os bacelos) para estrume ou Bacelo, abrir valas, enxertar as vinhas, tapar a enxertia, sulfatar, carregar as uvas, trabalhar nas adegas, trabalhar nas hortas, cavar a terra para os legumes, varejar a azeitona, trabalhar nos lagares de azeite, tirar a cortiça, tosquiar o gado, trabalhar em poços, trabalhar em brocas e barrancos, chacotar a lenha, rechegar (prender os animais aos arados com os arreios), enfornar, terrear (limpar os terrenos das ervas daninhas), empoar e ensacar, o que aqui vai, santo Deus, de palavras, tão bonitas, tão de enriquecer os léxicos, bem-aventurados os que trabalham, e que faria então se nos puséssemos a explicar como se faz cada trabalho e em que época, os instrumentos, os apeiros (apetrechos de lavoura), e se é obra para homem ou para mulher e porquê… (Pág.90)

Um dia, se não desistirmos, saberemos todos que coisas são estas e a distância que vai das palavras que as tentam explicar, a distância que vai dessas palavras ao ser que as ditas coisas são. Só escrito assim parece complicado.
Também complicada, por exemplo, parece esta máquina, e é tão simples. Chamam-lhe debulhadora, nome desta vez bem posto, porque precisamente é isso que faz, tira os grãos da espiga, palha para um lado, cereal para outro. Vista de fora, é uma grande caixa de madeira sobre rodas de ferro, ligada por uma correia a um motor que trepida, retumba e, com perdão, fede. Pintaram-na de amarelo gema de ovo, mas a poeira e o sol bruto quebraram-lhe a cor, e agora mais parece um acidente do terreno, ao lado doutro que são os frascais (palheiros), e com este sol nem se distingue bem, não há nada que esteja quieto, é o motor a saltar, a debulhadora a vomitar palha e grãos, a correia frouxa a oscilar, e o ar vibrando como se todo ele fosse o reflexo do sol num espelho agitado no céu por mãozinhas de anjos que não têm mais que fazer. Há uns vultos no meio desta névoa. Estiveram todo o dia nisto, e ontem, anteontem, e mais para trás, desde que a debulha começou, são cinco, um mais velho, quatro de pouca idade, que para esta violentação não deveriam bastar os dezassete, dezoito anos que têm. Dormem na eira, na revessa (junção) dos fardos, mas é noite fechada quando o motor se cala e ainda vem longe o sol quando se ouve o primeiro tiro daquela besta que se alimenta de bidões dum líquido preto e pegajoso, e depois, todo o santo dia, diabos o levem, matraqueia os ouvidos. É ele que marca a cadência do trabalho, a debulhadora não pode mastigar em falso, dá-se logo por isso, vem o capataz de resguardo e brama. A boca da máquina é um vulcão para dentro, um gasgarro (boca enorme) de gigante, e é o mais velho dos cinco que mais tempo a alimenta. Os outros fazem subir os frascais , giram como doidos naquela perdição de palha miúda, levam o trigo seco e áspero, os caules rijos, a espiga barbaçuda, o pó, onde vai já o verde tenríssimo da seara quando é primavera e a terra parece realmente o paraíso.
A água que se bebe do quartão (a quarta parte de um almude, ou seja de 25 litros) não tarda que fique mole, doentia, como se eu agora a estivesse a beber de um brejo, de borco, quero lá saber de vermes e bichas, que é esse o nome que damos aqui às sanguessugas… (Pág100)

Quem vive na cidade criou-se com desconfianças, por dá cá aquelas palhas exige logo provas e juramentos, é mal feito, devemos acreditar nas coisa como nos são ditas, foi o caso daquela vez em que António Mau-Tempo, já então proprietário da agora falada espingarda de carregar pela boca, tinha pólvora para a carregar, mas faltava-lhe o chumbo. Era então a época dos coelhos, tem de dizer-se já, para que não apareça aí alguém a perguntar por que não usava António Mau-Tempo o sistema da pedra, da pimenta e do jornal como fazia para as lebres. Só ignorantes da arte da caça não sabem que os coelhos são bichos sem qualquer espécie de curiosidade, ver um jornal no chão ou uma nuvem no céu, para eles é tudo o mesmo, salvo que da nuvem chove e do jornal não, por isso não se pode dispensar a espingarda ou o laço ou o pau, mas agora estamos a falar de espingardas.
Não há decerto maior desventura do que esta de ter o caçador uma boa arma, mesmo de pederneira, pólvora em quantidade, e faltar-lhe o chumbo. Porque é que não o foi comprar. Não tinha dinheiro, esse é que era o mal. Então como é que fez? Primeiro não fiz nada, pus-me a pensar. E descobriu ? Descobri, pensando descobre-se sempre. Explique-me lá como é que resolveu a dificuldade, sempre estou para ver. Tinha aí um cartucho de cardas para as botas e carreguei com elas a espingarda. O quê, carregou a espingarda com cardas? Sim senhor, se calhar não acredita. Acredito, porém nunca tal ouvi. Alguma vez terá de começar a acreditar naquilo que nunca ouviu. Conte lá então o resto, Já eu ia no campo quando me veio uma ideia que esteve quase a fazer-me voltar para trás. O quê? É verdade, lembrei-me de que um coelho apanhado pela carga de cardas ia ficar feito numa pasta de sangue, todo esfrangalhado nem se ia poder comer. E daí, pus-me outra vez a pensar. E descobriu? Descobri, pensando descobre-se sempre, coloquei-me na direcção de uma árvore de tronco grosso que ali havia e esperei. Esperou muito? Esperei o que foi preciso, nunca se espera demais nem de menos, até que veio o coelho, sim senhor, assim que deu por mim largou a correr na direcção da árvore, eu tinha estudado o terreno, e quando ele passou rente, trás, lá vai o tiro. Então não ficou esfarrapado? Qual quê, para que é que eu tinha estado a pensar, não me dirá? As cardas apanharam-no pelas orelhas e pregaram-no ao tronco da azinheira, era uma azinheira, por sinal. Essa é boa. É boa, é, foi só dar-lhe um soco no cachaço e tirar as cardas, que até quando comi o coelho já tinha as botas cardeadas de novo.
São os homens feitos de maneira que mesmo quando mentem dizem outra verdade, e se pelo contrário é a verdade que querem lançar da boca para fora, vai sempre com ela uma forma de mentir, mesmo não havendo o propósito… (Pág.284)

Então outra voz, vem dali, sobre a sombra da noite cai uma sombra que não se sabe donde vem, que ideia lhe lembrou, não está a falar das oito horas de trabalho nem do salário de quarenta escudos, estes é que são os assuntos para que a reunião foi convocada, porém ninguém tem alma de interromper. Eles sempre quiseram baixar-nos a dignidade, e ouvindo eles todos entendem o que foi dito, eles são a guarda, a pide, é o latifúndio e seu dono Alberto ou Dagoberto, o dragão e o capitão, a fominha de dentes e o osso partido, a ânsia e a quebradura. Quiseram baixar-nos a dignidade, não pode ser mais assim, tem de acabar, ouçam todos isto que aconteceu comigo e com o meu pai que já morreu, foi um segredo de nós dois, mas hoje não posso ficar calado, se os camaradas não se convencerem com este caso, então não há mais nada a fazer, estamos perdidos. Uma vez há muitos anos, estava assim uma noite escura como esta, o meu Pai foi comigo, fui eu com ele apanhar bolotas para comermos, não havia nada em casa....já tínhamos o taleigo quase cheio apareceu a guarda...e disse, não vale a pena dizer o que eles disseram, já nem me lembro bem, chamaram-nos nomes... disseram que podíamos ficar com a bolota, mas com uma condição, brigarmos um com o outro para eles verem, e então o meu Pai respondeu que não ia brigar com o seu próprio filho, mas eles disseram que sendo assim íamos para o posto, pagávamos a multa e talvez levássemos uns aconchegos pelas costas abaixo... e então o meu Pai respondeu que estava bem, íamos brigar...e então o meu Pai deu-me um encontrão, e eu a fingir deixei-me cair, era a ver se os enganávamos, julgávamos nós, mas eles disseram que ou brigávamos a sério, a aleijar, ou íamos presos... o meu Pai ficou desesperado, e bateu-me, doeu-me tanto, não foi a força da pancada, e eu dei-lhe troco da mesma maneira, e daí a uns minutos andávamos a rebolar pelo chão os guardas riam como uns perdidos, e uma vez que pus a mão na cara do meu Pai senti-a molhada, não era suor...
Quando demos por nós estávamos sozinhos, os guardas tinham-se ido embora, acho eu que por desprezo, era o que merecíamos e então o meu pai começou a chorar e eu embalei-o como se ele fosse uma criança, jurei que nunca haveria de contar a ninguém, mas hoje não podia ficar calado… (Pág. 336)




Para não faltar ao outro sabido costume, a António Mau-tempo mal lhe pesa o farnel que leva para o dia todo, um banquete de meio carapau e um bocado de pão de milho. Logo ao sair de casa, carapau viste-lo tu, porque há fomes que não podem esperar, e esta é velha. Fica o pão de milho para o resto do dia, migalho agora, logo migalho, escarrapatada (raspada) a côdea com mil cautelas para que nem um cibozinho (pequena porção, migalho) se perca entre as ervas do chão, onde as formigas, de focinho no ar como se fossem cães, desesperam de abastecer o celeiro com tais sobras e desprezos. Parava-se o maioral num arneiro, em sua autoridade de maioral, e punha-se aos gritos. Ó rapaz, vai além àquele lado,, ó rapaz, ampara aí os animais, e António Mau-Tempo, vassourinha de varrer, girava em redor da vara com se fosse, ele, cão de pastor… (Pág.87)

Que os trabalhos de homem são muitos. Já ficaram ditos alguns e outros agora se acrescentam para ilustração geral, que as pessoas da cidade cuidam, em sua ignorância, que tudo é semear e colher, pois muito enganadas vivem se não aprenderem a dizer as palavras todas e a entender o que elas são: ceifar, carregar molhos, gadanhar, debulhar à máquina ou a sangue, malhar o centeio, tapar o palheiro, enfardar a palha ou o feno, malhar o milho, desmontar, espalhar o adubo, semear cereais, lavrar, cortar, arrotear, cavar o milho, tapar as craveiras, podar, argolar, rabocar, escavar, montear (caçar no monte), abrir as covatas (buracos fundos para os bacelos) para estrume ou Bacelo, abrir valas, enxertar as vinhas, tapar a enxertia, sulfatar, carregar as uvas, trabalhar nas adegas, trabalhar nas hortas, cavar a terra para os legumes, varejar a azeitona, trabalhar nos lagares de azeite, tirar a cortiça, tosquiar o gado, trabalhar em poços, trabalhar em brocas e barrancos, chacotar a lenha, rechegar (prender os animais aos arados com os arreios), enfornar, terrear (limpar os terrenos das ervas daninhas), empoar e ensacar, o que aqui vai, santo Deus, de palavras, tão bonitas, tão de enriquecer os léxicos, bem-aventurados os que trabalham, e que faria então se nos puséssemos a explicar como se faz cada trabalho e em que época, os instrumentos, os apeiros (apetrechos de lavoura), e se é obra para homem ou para mulher e porquê… (Pág.90)

Um dia, se não desistirmos, saberemos todos que coisas são estas e a distância que vai das palavras que as tentam explicar, a distância que vai dessas palavras ao ser que as ditas coisas são. Só escrito assim parece complicado.
Também complicada, por exemplo, parece esta máquina, e é tão simples. Chamam-lhe debulhadora, nome desta vez bem posto, porque precisamente é isso que faz, tira os grãos da espiga, palha para um lado, cereal para outro. Vista de fora, é uma grande caixa de madeira sobre rodas de ferro, ligada por uma correia a um motor que trepida, retumba e, com perdão, fede. Pintaram-na de amarelo gema de ovo, mas a poeira e o sol bruto quebraram-lhe a cor, e agora mais parece um acidente do terreno, ao lado doutro que são os frascais (palheiros), e com este sol nem se distingue bem, não há nada que esteja quieto, é o motor a saltar, a debulhadora a vomitar palha e grãos, a correia frouxa a oscilar, e o ar vibrando como se todo ele fosse o reflexo do sol num espelho agitado no céu por mãozinhas de anjos que não têm mais que fazer. Há uns vultos no meio desta névoa. Estiveram todo o dia nisto, e ontem, anteontem, e mais para trás, desde que a debulha começou, são cinco, um mais velho, quatro de pouca idade, que para esta violentação não deveriam bastar os dezassete, dezoito anos que têm. Dormem na eira, na revessa (junção) dos fardos, mas é noite fechada quando o motor se cala e ainda vem longe o sol quando se ouve o primeiro tiro daquela besta que se alimenta de bidões dum líquido preto e pegajoso, e depois, todo o santo dia, diabos o levem, matraqueia os ouvidos. É ele que marca a cadência do trabalho, a debulhadora não pode mastigar em falso, dá-se logo por isso, vem o capataz de resguardo e brama. A boca da máquina é um vulcão para dentro, um gasgarro (boca enorme) de gigante, e é o mais velho dos cinco que mais tempo a alimenta. Os outros fazem subir os frascais , giram como doidos naquela perdição de palha miúda, levam o trigo seco e áspero, os caules rijos, a espiga barbaçuda, o pó, onde vai já o verde tenríssimo da seara quando é primavera e a terra parece realmente o paraíso.
A água que se bebe do quartão (a quarta parte de um almude, ou seja de 25 litros) não tarda que fique mole, doentia, como se eu agora a estivesse a beber de um brejo, de borco, quero lá saber de vermes e bichas, que é esse o nome que damos aqui às sanguessugas… (Pág100)

Quem vive na cidade criou-se com desconfianças, por dá cá aquelas palhas exige logo provas e juramentos, é mal feito, devemos acreditar nas coisa como nos são ditas, foi o caso daquela vez em que António Mau-Tempo, já então proprietário da agora falada espingarda de carregar pela boca, tinha pólvora para a carregar, mas faltava-lhe o chumbo. Era então a época dos coelhos, tem de dizer-se já, para que não apareça aí alguém a perguntar por que não usava António Mau-Tempo o sistema da pedra, da pimenta e do jornal como fazia para as lebres. Só ignorantes da arte da caça não sabem que os coelhos são bichos sem qualquer espécie de curiosidade, ver um jornal no chão ou uma nuvem no céu, para eles é tudo o mesmo, salvo que da nuvem chove e do jornal não, por isso não se pode dispensar a espingarda ou o laço ou o pau, mas agora estamos a falar de espingardas.
Não há decerto maior desventura do que esta de ter o caçador uma boa arma, mesmo de pederneira, pólvora em quantidade, e faltar-lhe o chumbo. Porque é que não o foi comprar. Não tinha dinheiro, esse é que era o mal. Então como é que fez? Primeiro não fiz nada, pus-me a pensar. E descobriu ? Descobri, pensando descobre-se sempre. Explique-me lá como é que resolveu a dificuldade, sempre estou para ver. Tinha aí um cartucho de cardas para as botas e carreguei com elas a espingarda. O quê, carregou a espingarda com cardas? Sim senhor, se calhar não acredita. Acredito, porém nunca tal ouvi. Alguma vez terá de começar a acreditar naquilo que nunca ouviu. Conte lá então o resto, Já eu ia no campo quando me veio uma ideia que esteve quase a fazer-me voltar para trás. O quê? É verdade, lembrei-me de que um coelho apanhado pela carga de cardas ia ficar feito numa pasta de sangue, todo esfrangalhado nem se ia poder comer. E daí, pus-me outra vez a pensar. E descobriu? Descobri, pensando descobre-se sempre, coloquei-me na direcção de uma árvore de tronco grosso que ali havia e esperei. Esperou muito? Esperei o que foi preciso, nunca se espera demais nem de menos, até que veio o coelho, sim senhor, assim que deu por mim largou a correr na direcção da árvore, eu tinha estudado o terreno, e quando ele passou rente, trás, lá vai o tiro. Então não ficou esfarrapado? Qual quê, para que é que eu tinha estado a pensar, não me dirá? As cardas apanharam-no pelas orelhas e pregaram-no ao tronco da azinheira, era uma azinheira, por sinal. Essa é boa. É boa, é, foi só dar-lhe um soco no cachaço e tirar as cardas, que até quando comi o coelho já tinha as botas cardeadas de novo.
São os homens feitos de maneira que mesmo quando mentem dizem outra verdade, e se pelo contrário é a verdade que querem lançar da boca para fora, vai sempre com ela uma forma de mentir, mesmo não havendo o propósito… (Pág.284)

Então outra voz, vem dali, sobre a sombra da noite cai uma sombra que não se sabe donde vem, que ideia lhe lembrou, não está a falar das oito horas de trabalho nem do salário de quarenta escudos, estes é que são os assuntos para que a reunião foi convocada, porém ninguém tem alma de interromper. Eles sempre quiseram baixar-nos a dignidade, e ouvindo eles todos entendem o que foi dito, eles são a guarda, a pide, é o latifúndio e seu dono Alberto ou Dagoberto, o dragão e o capitão, a fominha de dentes e o osso partido, a ânsia e a quebradura. Quiseram baixar-nos a dignidade, não pode ser mais assim, tem de acabar, ouçam todos isto que aconteceu comigo e com o meu pai que já morreu, foi um segredo de nós dois, mas hoje não posso ficar calado, se os camaradas não se convencerem com este caso, então não há mais nada a fazer, estamos perdidos. Uma vez há muitos anos, estava assim uma noite escura como esta, o meu Pai foi comigo, fui eu com ele apanhar bolotas para comermos, não havia nada em casa....já tínhamos o taleigo quase cheio apareceu a guarda...e disse, não vale a pena dizer o que eles disseram, já nem me lembro bem, chamaram-nos nomes... disseram que podíamos ficar com a bolota, mas com uma condição, brigarmos um com o outro para eles verem, e então o meu Pai respondeu que não ia brigar com o seu próprio filho, mas eles disseram que sendo assim íamos para o posto, pagávamos a multa e talvez levássemos uns aconchegos pelas costas abaixo... e então o meu Pai respondeu que estava bem, íamos brigar...e então o meu Pai deu-me um encontrão, e eu a fingir deixei-me cair, era a ver se os enganávamos, julgávamos nós, mas eles disseram que ou brigávamos a sério, a aleijar, ou íamos presos... o meu Pai ficou desesperado, e bateu-me, doeu-me tanto, não foi a força da pancada, e eu dei-lhe troco da mesma maneira, e daí a uns minutos andávamos a rebolar pelo chão os guardas riam como uns perdidos, e uma vez que pus a mão na cara do meu Pai senti-a molhada, não era suor...
Quando demos por nós estávamos sozinhos, os guardas tinham-se ido embora, acho eu que por desprezo, era o que merecíamos e então o meu pai começou a chorar e eu embalei-o como se ele fosse uma criança, jurei que nunca haveria de contar a ninguém, mas hoje não podia ficar calado… (Pág. 336)


(Extracto do Livro «Levantado do Chão» de José Saramago - 1980)


Luis - 2007-04-07


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