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Todos os dias têm a sua história, um só minuto levaria anos a contar, o mínimo gesto, o descasque miudinho de uma palavra, duma sílaba, dum som, para já não falar dos pensamentos, que é coisa de muito estofo, pensar no que se pensa, ou pensou, ou está pensando, e que pensamento é esse que pensa o outro pensamento, não acabaríamos nunca mais.
Melhor é declarar que estes anos de João Mau Tempo vão ser os da sua educação profissional, no sentido tradicional e campestre de que um homem de trabalho tem de saber de tudo, tão bom para ceifar como para tirar cortiça, tão destro a valar como a semear, tão de bom lombo para carregar como de rins para cavar. Este saber transmite-se nas gerações se exame nem discussão, é assim porque sempre assim foi, isto é uma enxada de gaviões, isto uma gadanha, e isto uma gota de suor. Ou cuspo branco espesso em tarde de fornalha, ou pancada de sol em cima da ganacha (cabeça), ou jarretes desfalecidos de pouco alimento. Entre os dez anos e os vinte há que aprender tudo e depressa, ou não teremos patrão que nos aceite…
… Ajustou-se para estes patrões Joaquim Carranca, ficando João Mau Tempo a trabalhar à jorna. Tudo junto era uma ridicularia, dava, se dava, para não gemerem de fome constante, e se alguma conveniência ali se achava, era estarem reunidos e terem o benefício de umas hortas para poderem castigar o corpo em domingos e dias santos. Pelo tarde deste período era a soldada de Joaquim Carranca de sessenta quilos de farinha de milho, cem escudos, três litros de azeite, cinco litros de feijão frade, casa e lenhas, e ao fim do ano uma gorjeta consoante. Quanto à soldada dos mais novos, cifrava-se em quarenta quilos de farinha de milho, litro e meio de azeite, três litros de feijão frade e cinquenta escudos.
… Ajustou-se para estes patrões Joaquim Carranca, ficando João Mau Tempo a trabalhar à jorna. Tudo junto era uma ridicularia, dava, se dava, para não gemerem de fome constante, e se alguma conveniência ali se achava, era estarem reunidos e terem o benefício de umas hortas para poderem castigar o corpo em domingos e dias santos. Pelo tarde deste período era a soldada de Joaquim Carranca de sessenta quilos de farinha de milho, cem escudos, três litros de azeite, cinco litros de feijão frade, casa e lenhas, e ao fim do ano uma gorjeta consoante. Quanto à soldada dos mais novos, cifrava-se em quarenta quilos de farinha de milho, litro e meio de azeite, três litros de feijão frade e cinquenta escudos.
Era assim mês por mês. Levavam os sacos e saquitéis (saquinhos) até às tulhas, a bilha à adega, media o feitor os víveres, pagava o patrão de escala o numerário, e com isto se haviam de governar os corpos e repor forças onde todos os dias se gastavam. Porém, claro está que nem todas elas se restabeleciam, não queriam mais nada, além de ser fatal que o tempo, passando, faça suas destruições, e daí que as caveiras em demasia se mostrassem por debaixo da pele, para isto se nasce… (Pág. 61)
Depois da terra, a primeira coisa de que Lamberto precisa é de um feitor. O feitor é o chicote que mete na ordem a canzoada. É um cão escolhido entre os cães para morder os cães. Convém que seja cão para conhecer as manhas e as defesas dos cães. Não se vai buscar um feitor aos filhos de Norberto. Alberto é Humberto, feitor é primeiro criado, com privilégios e benesses na proporção do excesso de trabalho que for capaz de arrancar à canzoada. Mas é um criado. Está colocado entre os primeiros e os últimos, é uma espécie de mula humana, uma aberração, um judas, o que traiu os seus semelhantes a troco de mais poder e de algum pão de sobra.
A grande e decisiva arma é a ignorância. É bom, dizia Sigisberto no seu jantar de aniversário, que eles nada saibam, nem ler, nem escrever, nem contar, nem pensar, que considerem e aceitem que o mundo não pode ser mudado, que este mundo é o único possível, tal como está, que só depois de morrer haverá paraíso, o padre Agamedes que explique isso melhor, e que só o trabalho dá dignidade e dinheiro, porém não têm de achar que eu ganho mais do que eles , a terra é minha, quando chega o dia de pagar impostos e contribuições, não é a eles que eu vou pedir dinheiro emprestado, que aliás sempre foi assim, e será, se não for eu a dar-lhes trabalho, quem o dará, eu e eles, eu que sou a terra, eles que o trabalho são, o que for bom para mim, bom para eles é, foi Deus que assim quis as coisas, o padre Agamedes que explique melhor, em palavras simples que não façam mais confusão à confusão que têm na cabeça, e se o padre não for suficiente, pede-se aí à guarda que dê um passeio a cavalo pelas aldeias, só a mostrar-se, é um recado que eles entendem sem dificuldade.
Depois da terra, a primeira coisa de que Lamberto precisa é de um feitor. O feitor é o chicote que mete na ordem a canzoada. É um cão escolhido entre os cães para morder os cães. Convém que seja cão para conhecer as manhas e as defesas dos cães. Não se vai buscar um feitor aos filhos de Norberto. Alberto é Humberto, feitor é primeiro criado, com privilégios e benesses na proporção do excesso de trabalho que for capaz de arrancar à canzoada. Mas é um criado. Está colocado entre os primeiros e os últimos, é uma espécie de mula humana, uma aberração, um judas, o que traiu os seus semelhantes a troco de mais poder e de algum pão de sobra.
A grande e decisiva arma é a ignorância. É bom, dizia Sigisberto no seu jantar de aniversário, que eles nada saibam, nem ler, nem escrever, nem contar, nem pensar, que considerem e aceitem que o mundo não pode ser mudado, que este mundo é o único possível, tal como está, que só depois de morrer haverá paraíso, o padre Agamedes que explique isso melhor, e que só o trabalho dá dignidade e dinheiro, porém não têm de achar que eu ganho mais do que eles , a terra é minha, quando chega o dia de pagar impostos e contribuições, não é a eles que eu vou pedir dinheiro emprestado, que aliás sempre foi assim, e será, se não for eu a dar-lhes trabalho, quem o dará, eu e eles, eu que sou a terra, eles que o trabalho são, o que for bom para mim, bom para eles é, foi Deus que assim quis as coisas, o padre Agamedes que explique melhor, em palavras simples que não façam mais confusão à confusão que têm na cabeça, e se o padre não for suficiente, pede-se aí à guarda que dê um passeio a cavalo pelas aldeias, só a mostrar-se, é um recado que eles entendem sem dificuldade.
Mas diga-me, senhora mãe, bate também a guarda nos donos do latifúndio? Credo, que esta criança não regula bem da cabeça, onde é que tal se viu, a guarda, eu filho, foi criada e sustentada para bater no povo.
Como é possível, mãe, então faz-se um guarda só para bater no povo, e que faz o povo? O povo não tem quem bata no dono do latifúndio que manda a guarda bater no povo. Mas eu acho que o povo podia pedir à guarda que batesse no dono do latifúndio. Bem digo eu, Maria, que esta criança não está em seu juízo, não a deixes andar por aí a dizer estas coisas, que ainda temos trabalhos com a guarda.
O povo fez-se para viver sujo e esfomeado. Um povo que se lava é um povo que não trabalha, talvez nas cidades, enfim, não digo que não, mas aqui, no latifúndio, vai contratado por três ou quatro semanas para longe de casa, e meses até, se assim convier a Alberto, e é ponto de honra e de homem que durante todo o tempo de contrato não se lave nem cara nem mãos, nem a barba se corte. E se o fizer, hipótese ingénua de tão improvável, pode contar com a troça dos patrões e dos próprios companheiros. É esse o luxo da época, gloriarem-se os sofredores do seu sofrimento, os escravos da escravidão. É preciso que este bicho da terra seja bicho mesmo, que manhã some a remela da noite à remela das noites, que o sujo das mãos, da cara, dos sovacos, das virilhas, dos pés, do buraco do corpo, seja o halo glorioso do trabalho no latifúndio, é preciso que o homem esteja abaixo do animal, que esse, para se limpar, lambe-se, é preciso que o homem se degrade para que não se respeite a si próprio nem aos seus próximos.
E mais. Gabam-se os trabalhadores das pontadas que apanharam nos trabalhos da arroteia. cada uma delas é medalha para vanglórias de taberna, entre o casco e o copo. Já apanhei tantas ou tantas pontadas a arrotear para Berto e Humberto. Estes é que eram os trabalhadores bons, os que, em tempo de chicote, mostrariam envaidecidos os vergões encarnados, e se sangrarem melhor ainda, gabarolas iguais ao rebotalho das cidades que presumiam de virilidade tanto maior quantos mais cavalos duros ou cancros moles adquirissem no comércio da cama alugada.
O povo fez-se para viver sujo e esfomeado. Um povo que se lava é um povo que não trabalha, talvez nas cidades, enfim, não digo que não, mas aqui, no latifúndio, vai contratado por três ou quatro semanas para longe de casa, e meses até, se assim convier a Alberto, e é ponto de honra e de homem que durante todo o tempo de contrato não se lave nem cara nem mãos, nem a barba se corte. E se o fizer, hipótese ingénua de tão improvável, pode contar com a troça dos patrões e dos próprios companheiros. É esse o luxo da época, gloriarem-se os sofredores do seu sofrimento, os escravos da escravidão. É preciso que este bicho da terra seja bicho mesmo, que manhã some a remela da noite à remela das noites, que o sujo das mãos, da cara, dos sovacos, das virilhas, dos pés, do buraco do corpo, seja o halo glorioso do trabalho no latifúndio, é preciso que o homem esteja abaixo do animal, que esse, para se limpar, lambe-se, é preciso que o homem se degrade para que não se respeite a si próprio nem aos seus próximos.
E mais. Gabam-se os trabalhadores das pontadas que apanharam nos trabalhos da arroteia. cada uma delas é medalha para vanglórias de taberna, entre o casco e o copo. Já apanhei tantas ou tantas pontadas a arrotear para Berto e Humberto. Estes é que eram os trabalhadores bons, os que, em tempo de chicote, mostrariam envaidecidos os vergões encarnados, e se sangrarem melhor ainda, gabarolas iguais ao rebotalho das cidades que presumiam de virilidade tanto maior quantos mais cavalos duros ou cancros moles adquirissem no comércio da cama alugada.
Ah, o povo conservado na banha ou no mel da ignorância, que nunca te faltaram ofensores. E trabalha, mata-te a trabalhar, rebenta se for preciso, que assim deixarás boa lembrança no feitor e no patrão, ai de ti se ganhas fama de malandro, nunca mais tens quem te queira. Podes ir pôr-te às portas das tabernas, com os teus companheiros de desfortuna, eles próprios te hão-de desprezar, e o feitor, ou o patrão, se lhe deu para isso, olhará para ti com nojo e tu só ficarás sem trabalho, para aprenderes. Que os outros decoraram a lição, vão matar-se todos os dias no latifúndio, e quando tu chegares a casa, e casa isso é, com que cara vais dizer que não arranjaste trabalho, que os outros sim, mas tu não. Emenda-te, se ainda vais a tempo, jura que já tiveste vinte pontadas, crucifica-te, estende o braço para a sangria, abre as veias e diz: este é o meu sangue, bebei, esta é a minha carne, comei, esta é a minha vida, tomai-a, com a bênção da igreja, a continência à bandeira, o desfile das tropas, a entrega das credenciais, o diploma da universidade, façam-se em mim as vossas vontades, assim na terra como nos céus… (Pág.74)
Os homens vão trabalhar para longe, onde se pode ganhar mais algum dinheiro. No fundo, são todos malteses, andam por aqui e por ali, e voltam a casa semanas ou meses depois para fazer outro filho. Entretanto, nas arroteias de carvalheira, por conta dos seareiros, cada pingo de suor é uma gota de sangue perdida, e os desgraçados todo o santo dia penando e às vezes de noite, contam-se as horas de trabalho pelos dedos de três mãos, quando não se tem de ir à quarta mão da besta enumerar o que falta, não se lhes enxuga a roupa no corpo durante toda a quinzena. Para descansar, se tal verbo tem cabimento, deitam-se numa cama de carqueja com palha por cima, e pela noite fora gemem, sujos, pisados, assim não vale, não se pode acreditar no padre Agamedes que vem do seu almoço dominical em casa de Floriberto, e bom almoço foi, como se comprova pelo arroto que ressoa no latifúndio.
É este o poder dos céus. Além disso, note-se, a história repete-se muito. Estão os homens na cabana, derrubados de fadiga, vestidos, uns dormem, outros não podem, e pelas frinchas das canas que fazem as paredes entra uma claridade nunca vista, a manhã ainda vem longe, manhã não é, sai um deles fora e fica tolhido de temor, que todo o céu é um chuveiro de estrelas, caindo como lampiões, e a terra está clara como não a faz nenhum luar. Vêm todos ver, há quem se assuste de medo verdadeiro, e as estrelas descem silenciosamente, a terra vaia acabar, ou enfim começar, já não é sem tempo. Diz um com fama de sábio: movimentos nos astros, movimentos na terra. Estão muito juntos, olham para cima, com as gorjas esticadas, e recolhem na cara suja a poeira luminosa das estrelas cadentes, chuva incomparável que deixa a terra com uma sede diferente e maior.
Os homens vão trabalhar para longe, onde se pode ganhar mais algum dinheiro. No fundo, são todos malteses, andam por aqui e por ali, e voltam a casa semanas ou meses depois para fazer outro filho. Entretanto, nas arroteias de carvalheira, por conta dos seareiros, cada pingo de suor é uma gota de sangue perdida, e os desgraçados todo o santo dia penando e às vezes de noite, contam-se as horas de trabalho pelos dedos de três mãos, quando não se tem de ir à quarta mão da besta enumerar o que falta, não se lhes enxuga a roupa no corpo durante toda a quinzena. Para descansar, se tal verbo tem cabimento, deitam-se numa cama de carqueja com palha por cima, e pela noite fora gemem, sujos, pisados, assim não vale, não se pode acreditar no padre Agamedes que vem do seu almoço dominical em casa de Floriberto, e bom almoço foi, como se comprova pelo arroto que ressoa no latifúndio.
É este o poder dos céus. Além disso, note-se, a história repete-se muito. Estão os homens na cabana, derrubados de fadiga, vestidos, uns dormem, outros não podem, e pelas frinchas das canas que fazem as paredes entra uma claridade nunca vista, a manhã ainda vem longe, manhã não é, sai um deles fora e fica tolhido de temor, que todo o céu é um chuveiro de estrelas, caindo como lampiões, e a terra está clara como não a faz nenhum luar. Vêm todos ver, há quem se assuste de medo verdadeiro, e as estrelas descem silenciosamente, a terra vaia acabar, ou enfim começar, já não é sem tempo. Diz um com fama de sábio: movimentos nos astros, movimentos na terra. Estão muito juntos, olham para cima, com as gorjas esticadas, e recolhem na cara suja a poeira luminosa das estrelas cadentes, chuva incomparável que deixa a terra com uma sede diferente e maior.
E um maltês meio tonto que no dia seguinte ali passou, garantiu, por alma da própria mãe ainda viva, que aqueles celestes sinais anunciavam que numa malhada em ruínas, a três léguas dali, tinha nascido, mas doutra mãe, e provavelmente não virgem, uma criança que só não seria Jesus Cristo se não a baptizassem com esse nome. Ninguém acreditou, e graças a este cepticismo se viu facilitada a tarefa do padre Agamedes que no domingo seguinte, na igreja, repleta e ansiosa fora do costume, facilmente zombou dos parvos que julgam que Jesus Cristo vai voltar à terra assim sem mais nem menos. Para dizer o que ele diria cá estou eu que sou padre, tenho ordens e instrução, e estou mandatado pela santa madre igreja católica apostólica romana, entenderam todos, ou querem que lhes abra ouvido no alto da cabeça?... (Pág.80)
Chega o sábado e trás a féria, mas tão mesquinha ela é que não se vê nem sabe como aviar o farnel para a semana seguinte, arrepia-se uma pessoa mesmo não estando frio. Ia a mulher ao merceeiro e requeria: faz favor, fie-me lá o resto do avio, porque esta semana foi ruim por causa do mau tempo. Ou então dizia a mesma coisa por outras palavras, começando da mesma maneira; faz favor, fie-me lá o resto do avio porque esta semana o meu marido não ganhou nada por não haver trabalho. Ou ainda, pondo de vergonha os olhos no balcão, como quem não tem outra moeda com que pagar: senhor, o meu marido para o Verão já ganhará mais ordenado, depois faz contas consigo e paga-lhe o atrasado. E o merceeiro, batendo com o punho na costaneira (lombo), respondia: essa conversa já eu ouço há muito tempo, depois passa o Verão e fica cá o cão a ladrar à mesma, as dívidas são cães, tem graça esta, quem teria sido o primeiro a lembrar-se de tal, isto é um povo de invenções miúdas e necessitadas, imagine-se o rol do merceeiro ou do padeiro, ali escrito em grossos números a lápis, tanto aquele, tanto este, um cachorro pequeno, todo felpa, pode crescer, e esta fera, de dentuça como lobo, dívida grossa já do passado ano. Ou paga, ou corto-lhe o fiado. Mas os meus filhos têm fome, e as doenças, o meu homem sem trabalho, não temos donde nos venha. Quero lá saber, só leva depois de pagar. Ladram por esta terra os cães, ouvimo-los às portas, vêm atrás de quem não pagou, mordem-lhe nas canelas, mordem-lhe na alma, e o merceeiro vem à rua e diz para quem o quer ouvir. Diga lá ao seu marido, o resto já se sabe. Há quem espreite pelos postigos para ver quem é da vergonha, são crueldades de pobre, hoje tu, amanhã eu, não se pode levar a mal… (Pág.82)
Chega o sábado e trás a féria, mas tão mesquinha ela é que não se vê nem sabe como aviar o farnel para a semana seguinte, arrepia-se uma pessoa mesmo não estando frio. Ia a mulher ao merceeiro e requeria: faz favor, fie-me lá o resto do avio, porque esta semana foi ruim por causa do mau tempo. Ou então dizia a mesma coisa por outras palavras, começando da mesma maneira; faz favor, fie-me lá o resto do avio porque esta semana o meu marido não ganhou nada por não haver trabalho. Ou ainda, pondo de vergonha os olhos no balcão, como quem não tem outra moeda com que pagar: senhor, o meu marido para o Verão já ganhará mais ordenado, depois faz contas consigo e paga-lhe o atrasado. E o merceeiro, batendo com o punho na costaneira (lombo), respondia: essa conversa já eu ouço há muito tempo, depois passa o Verão e fica cá o cão a ladrar à mesma, as dívidas são cães, tem graça esta, quem teria sido o primeiro a lembrar-se de tal, isto é um povo de invenções miúdas e necessitadas, imagine-se o rol do merceeiro ou do padeiro, ali escrito em grossos números a lápis, tanto aquele, tanto este, um cachorro pequeno, todo felpa, pode crescer, e esta fera, de dentuça como lobo, dívida grossa já do passado ano. Ou paga, ou corto-lhe o fiado. Mas os meus filhos têm fome, e as doenças, o meu homem sem trabalho, não temos donde nos venha. Quero lá saber, só leva depois de pagar. Ladram por esta terra os cães, ouvimo-los às portas, vêm atrás de quem não pagou, mordem-lhe nas canelas, mordem-lhe na alma, e o merceeiro vem à rua e diz para quem o quer ouvir. Diga lá ao seu marido, o resto já se sabe. Há quem espreite pelos postigos para ver quem é da vergonha, são crueldades de pobre, hoje tu, amanhã eu, não se pode levar a mal… (Pág.82)
(Extracto do Livro «Levantado do Chão» de José Saramago - 1980)
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