O que mais há na terra, é paisagem. Por muito que do resto lhe falte, a paisagem sempre sobrou, abundância que só por milagre infatigável se explica, portanto a paisagem é sem dúvida anterior ao homem, e apesar disso, de tanto existir, não se acabou ainda. Será porque constantemente muda: tem épocas no ano em que o chão é verde, noutras amarelo, e depois castanho, ou negro. É também vermelho, em lugares, que é cor de barro ou sangue sangrado. Mas isso depende do que no chão se plantou e cultiva, ou ainda não, ou não já, ou do que por simples natureza nasceu, sem mão de gente, e só vem a morrer porque chegou o seu último fim. Não é o caso do trigo, que ainda com alguma vida é cortado. Nem do sobreiro, que vivíssimo, embora por sua gravidade o não pareça, se lhe arranca a pele. Aos gritos… (Pág.11)
De cada vez, sabemos, foi o homem comprado e vendido. Cada século teve o seu dinheiro, cada reino o seu homem para comprar e vender por morabitinos, marcos de ouro e prata, reais, dobras, cruzados, réis, e dobrões, e florins de fora. Volátil metal vário, aéreo como o espírito da flor ou o espírito do vinho: o dinheiro sobe, só para subir tem asas, não para descer. O lugar do dinheiro é um céu, um alto lugar onde os santos mudam de nome quando vem a ter de ser, mas o latifúndio não… (Pág.13)
Este sapateiro é remendão. Deita tombas, cardeia, remancha a obra (faz os acabamentos) quando lhe falta o apetite do trabalho, larga formas, sovela e faca de ofício para ir à taberna, questiona com os fregueses impacientes, e por tudo isto bate na mulher. Por deitar tombas e cardear, por isso também, que dentro de si não consegue encontrar paz, é um homem frenético que ainda bem não está sentado já pensa em levantar-se, ainda bem não chegou a uma terra, já pensa na outra. É um filho do vento, um maltês. .. (Pág.27)
Então chegou a república, Ganhavam os homens doze ou treze vinténs, e as mulheres menos de metade, como de costume. Comiam ambos o mesmo pão de bagaço, os mesmos farrapos de couve, os mesmos talos. A república veio despachada de Lisboa, andou de terra em terra pelo telégrafo, se o havia, recomendou-se pela imprensa, se a sabiam ler, pelo passar de boca em boca, que sempre foi o mais fácil. O trono caíra, o altar dizia que por ora não era este reino o seu mundo, o latifúndio percebeu tudo e deixou-se estar, e um litro de azeite custava mais de dois mil réis, dez vezes a jorna de um homem.
Viva a república, Viva. Patrão, quanto é a jorna agora?. Deixa ver, o que os outros pagarem, pago eu também, fala com o feitor. Então quanto é a jorna? Mais um vintém. Não chega para a minha necessidade. Se não quiseres, mais fica, não falta quem queira. Ai minha santa mãe, que um homem vai rebentar de tanta fome, e os filhos, que dou eu aos filhos?. Põe-nos a trabalhar. E se não há trabalho. Não faças tantos. Mulher, manda os filhos à lenha e as filhas ao rabisco da palha, e vem-te deitar. Sou a escrava do Senhor, faça-se em mim a sua vontade, e feita está, homem, eis-me grávida, pejada, prenhe, vou te um filho, vais ser pai, não tive sinais. Não faz mal, onde não comem sete, não comem oito…. (Pág. 33)
Então, porque entre o latifúndio monárquico e o latifúndio republicano não se viam diferenças e as parecenças eram todas, porque os salários, pelo pouco que podiam comprar, só serviam para acordar a fome, houve aí trabalhadores que se juntaram, inocentes, e foram ao administrador do concelho pedir melhores condições de vida. Alguém de boa letra lhes redigiu a petição, notando as novas alegrias portuguesas e esperanças populares filhas da república, muita saúde e fraternidade, senhor administrador, cá ficamos à espera da resposta. Despedidos os suplicantes… (Pág. 34)
Eis que voa a guarda nacional republicana por esses campos fora. Vão a trote, a galope, bate-lhes o sol nas armaduras, fraldejam as gualdrapas nos joelhos das bestas, ó cavalaria, ó Roldão, ó Farrabrás, ditosa pátria que tais filhos pariu. À vista está a herdade escolhida, e o tenente Contente manda desdobrar o esquadrão em linha de carga, e, à ordem do cornetim, a tropa avança lírica e guerreira, de sabre desembainhado, a pátria veio à varanda apreciar o lance, e quando os camponeses saem das casas, dos palheiros, dos lugares do gado, recebem no peito o peitoral dos cavalos e nas costas por enquanto as pranchadas, até que Ferrabrás, excitado como boi picado de mosca, roda o punho do sabre e cerce corta, talha, pica, cego de raiva, porquê não sabe. Ficaram os camponeses estendidos naquele chão, gemendo suas dores, e recolhidos ao casebre não folgaram, antes cuidaram das feridas o melhor que puderam, com grande gasto de água, sal e teias de aranha. Mais valia morrer, disse um. Só quando a hora chegar, disse outro… (Pág. 35)
Estão agora dois grupos de trabalhadores frente a frente, dez passos cortados os separam. Dizem os do norte. Há leis, fomos contratados e queremos trabalhar. Dizem os do sul. Sujeitam-se a ganhar menos, vêm aqui fazer-nos mal, voltem para as vossa terras, ratinhos. Dizem os do norte. Na nossa terra não há trabalho, tudo é pedra, tojo, somos beirões, não nos chamem ratinhos que é ofensa. Dizem os do sul. São ratinhos, são ratos, vêm aqui para roer o nosso pão. Dizem os do norte. Temos fome. Dizem os do sul. também nós, mas não queremos sujeitar-nos a esta miséria, se aceitarem trabalhar por esta jorna, ficamos nós sem ganhar. Dizem os do norte. A culpa é vossa, não sejais soberbos, aceitai o que o patrão oferece, antes menos que coisa nenhuma, e haverá trabalho para todos, por sois poucos e nós vimos ajudar. Dizem os do sul. É um engano, querem enganar-nos a todos, nós não temos que consentir neste salário, juntem-se a nós e o patrão terá de pagar melhor jorna a toda a gente. Dizem os do norte. Cada um sabe de si e Deus de todos, não queremos alianças, viemos de longe, não podemos ficar aqui em guerras com o patrão, queremos trabalhar. Dizem os do sul. aqui não trabalham. Dizem os do norte. Trabalhamos. Dizem os do sul. Esta terra é nossa. Dizem os do norte. Mas não a querem fabricar. Dizem os do sul. Por este salário, não. Dizem os do norte. Nós aceitamos o salário. Diz o feitor. Pronto, temos conversado, arredem lá para trás e deixem os homens pegar ao trabalho. Dizem os do sul. Não enregam. Diz o feitor. Enregam, que mando eu, ou chamo a guarda. Dizem os do sul. Antes que a guarda chegue, correrá aqui sangue. Diz o feitor. Se a guarda vier, ainda mais sangue correrá, depois não se queixem. Dizem os do sul. Irmãos, dêem ouvidos ao que dizemos, juntem-se a nós, por alma de quem lá têm. Dizem os do norte. Já foi dito, queremos trabalhar.
Então o primeiro do norte avançou para o trigo com a foice, e o primeiro do sul deitou-lhe a mão ao braço, empurraram-se sem agilidade, rijos, rudes, brutos, fome contra fome, miséria sobre miséria, pão que tanto nos custas. Veio a guarda e separou a briga, bateu para um lado só, empurrou à sabrada os do sul, amalhou-os como animais. Diz o sargento. Quer que os leve todos presos? Diz o feitor. Não vale a pena, são uns desgraçados, segure-os aí um pedaço, até desanimarem - diz o sargento. Mas há ali um ratinho com a cabeça rachada, houve agressão, a lei é a lei. Diz o feitor. Não vale a pena, meu sargento, sangue de bestas, tanto faz do norte como do sul, é o mijo do patrão.
De cada vez, sabemos, foi o homem comprado e vendido. Cada século teve o seu dinheiro, cada reino o seu homem para comprar e vender por morabitinos, marcos de ouro e prata, reais, dobras, cruzados, réis, e dobrões, e florins de fora. Volátil metal vário, aéreo como o espírito da flor ou o espírito do vinho: o dinheiro sobe, só para subir tem asas, não para descer. O lugar do dinheiro é um céu, um alto lugar onde os santos mudam de nome quando vem a ter de ser, mas o latifúndio não… (Pág.13)
Este sapateiro é remendão. Deita tombas, cardeia, remancha a obra (faz os acabamentos) quando lhe falta o apetite do trabalho, larga formas, sovela e faca de ofício para ir à taberna, questiona com os fregueses impacientes, e por tudo isto bate na mulher. Por deitar tombas e cardear, por isso também, que dentro de si não consegue encontrar paz, é um homem frenético que ainda bem não está sentado já pensa em levantar-se, ainda bem não chegou a uma terra, já pensa na outra. É um filho do vento, um maltês. .. (Pág.27)
Então chegou a república, Ganhavam os homens doze ou treze vinténs, e as mulheres menos de metade, como de costume. Comiam ambos o mesmo pão de bagaço, os mesmos farrapos de couve, os mesmos talos. A república veio despachada de Lisboa, andou de terra em terra pelo telégrafo, se o havia, recomendou-se pela imprensa, se a sabiam ler, pelo passar de boca em boca, que sempre foi o mais fácil. O trono caíra, o altar dizia que por ora não era este reino o seu mundo, o latifúndio percebeu tudo e deixou-se estar, e um litro de azeite custava mais de dois mil réis, dez vezes a jorna de um homem.
Viva a república, Viva. Patrão, quanto é a jorna agora?. Deixa ver, o que os outros pagarem, pago eu também, fala com o feitor. Então quanto é a jorna? Mais um vintém. Não chega para a minha necessidade. Se não quiseres, mais fica, não falta quem queira. Ai minha santa mãe, que um homem vai rebentar de tanta fome, e os filhos, que dou eu aos filhos?. Põe-nos a trabalhar. E se não há trabalho. Não faças tantos. Mulher, manda os filhos à lenha e as filhas ao rabisco da palha, e vem-te deitar. Sou a escrava do Senhor, faça-se em mim a sua vontade, e feita está, homem, eis-me grávida, pejada, prenhe, vou te um filho, vais ser pai, não tive sinais. Não faz mal, onde não comem sete, não comem oito…. (Pág. 33)
Então, porque entre o latifúndio monárquico e o latifúndio republicano não se viam diferenças e as parecenças eram todas, porque os salários, pelo pouco que podiam comprar, só serviam para acordar a fome, houve aí trabalhadores que se juntaram, inocentes, e foram ao administrador do concelho pedir melhores condições de vida. Alguém de boa letra lhes redigiu a petição, notando as novas alegrias portuguesas e esperanças populares filhas da república, muita saúde e fraternidade, senhor administrador, cá ficamos à espera da resposta. Despedidos os suplicantes… (Pág. 34)
Eis que voa a guarda nacional republicana por esses campos fora. Vão a trote, a galope, bate-lhes o sol nas armaduras, fraldejam as gualdrapas nos joelhos das bestas, ó cavalaria, ó Roldão, ó Farrabrás, ditosa pátria que tais filhos pariu. À vista está a herdade escolhida, e o tenente Contente manda desdobrar o esquadrão em linha de carga, e, à ordem do cornetim, a tropa avança lírica e guerreira, de sabre desembainhado, a pátria veio à varanda apreciar o lance, e quando os camponeses saem das casas, dos palheiros, dos lugares do gado, recebem no peito o peitoral dos cavalos e nas costas por enquanto as pranchadas, até que Ferrabrás, excitado como boi picado de mosca, roda o punho do sabre e cerce corta, talha, pica, cego de raiva, porquê não sabe. Ficaram os camponeses estendidos naquele chão, gemendo suas dores, e recolhidos ao casebre não folgaram, antes cuidaram das feridas o melhor que puderam, com grande gasto de água, sal e teias de aranha. Mais valia morrer, disse um. Só quando a hora chegar, disse outro… (Pág. 35)
Estão agora dois grupos de trabalhadores frente a frente, dez passos cortados os separam. Dizem os do norte. Há leis, fomos contratados e queremos trabalhar. Dizem os do sul. Sujeitam-se a ganhar menos, vêm aqui fazer-nos mal, voltem para as vossa terras, ratinhos. Dizem os do norte. Na nossa terra não há trabalho, tudo é pedra, tojo, somos beirões, não nos chamem ratinhos que é ofensa. Dizem os do sul. São ratinhos, são ratos, vêm aqui para roer o nosso pão. Dizem os do norte. Temos fome. Dizem os do sul. também nós, mas não queremos sujeitar-nos a esta miséria, se aceitarem trabalhar por esta jorna, ficamos nós sem ganhar. Dizem os do norte. A culpa é vossa, não sejais soberbos, aceitai o que o patrão oferece, antes menos que coisa nenhuma, e haverá trabalho para todos, por sois poucos e nós vimos ajudar. Dizem os do sul. É um engano, querem enganar-nos a todos, nós não temos que consentir neste salário, juntem-se a nós e o patrão terá de pagar melhor jorna a toda a gente. Dizem os do norte. Cada um sabe de si e Deus de todos, não queremos alianças, viemos de longe, não podemos ficar aqui em guerras com o patrão, queremos trabalhar. Dizem os do sul. aqui não trabalham. Dizem os do norte. Trabalhamos. Dizem os do sul. Esta terra é nossa. Dizem os do norte. Mas não a querem fabricar. Dizem os do sul. Por este salário, não. Dizem os do norte. Nós aceitamos o salário. Diz o feitor. Pronto, temos conversado, arredem lá para trás e deixem os homens pegar ao trabalho. Dizem os do sul. Não enregam. Diz o feitor. Enregam, que mando eu, ou chamo a guarda. Dizem os do sul. Antes que a guarda chegue, correrá aqui sangue. Diz o feitor. Se a guarda vier, ainda mais sangue correrá, depois não se queixem. Dizem os do sul. Irmãos, dêem ouvidos ao que dizemos, juntem-se a nós, por alma de quem lá têm. Dizem os do norte. Já foi dito, queremos trabalhar.
Então o primeiro do norte avançou para o trigo com a foice, e o primeiro do sul deitou-lhe a mão ao braço, empurraram-se sem agilidade, rijos, rudes, brutos, fome contra fome, miséria sobre miséria, pão que tanto nos custas. Veio a guarda e separou a briga, bateu para um lado só, empurrou à sabrada os do sul, amalhou-os como animais. Diz o sargento. Quer que os leve todos presos? Diz o feitor. Não vale a pena, são uns desgraçados, segure-os aí um pedaço, até desanimarem - diz o sargento. Mas há ali um ratinho com a cabeça rachada, houve agressão, a lei é a lei. Diz o feitor. Não vale a pena, meu sargento, sangue de bestas, tanto faz do norte como do sul, é o mijo do patrão.
Diz o sargento. Por falar em patrão, estou precisado de um bocado de lenha.
Diz o feitor. Lá lhe irá uma carrada.
Diz o sargento. E umas poucas telhas.
Diz o feitor. Não será por causa disso que dormirá ao relento.
Diz o sargento. A vida está cara.
Diz o feitor. Mando-lhe uns chouriços… (Pág. 38)
E os fados? Correm os lobisomens por encruzilhadas, má sina que lhes vem, meus senhores, não saberei de que mistérios, são encantamentos, em dia certo da semana saem de suas casas e na primeira cruz dos caminhos despem-se e rojam-se no chão, espojam-se, transformando-se na causa do rasto que por ali há. Qualquer rasto, ou só de animal mamífero? Qualquer rasto, meu senhor, que até uma vez houve um homem que se transformava em roda de carro, andava por aí a girar, a girar, uma aflição, mas o mais de costume é tornarem-se bichos, como foi o caso muito falado e verdadeiro daquele homem, não me lembro é o nome, que morava com a mulher no Monte do Curral da Légua, para as bandas da Pedra Grande, e o fado dele era sair todas as noites de Terça Feira, mas esse sabia do seu estado e por isso avisava a mulher que nunca abrisse a porta quando ele estivesse por fora, ouvisse ela o que ouvisse, e nessas alturas eram gritos e barulhos que faziam gelar o sangue a um cristão, ninguém era que dormisse, mas uma vez a mulher encheu-se de coragem, é que as mulheres são muito curiosas, tudo querem averiguar, e resolveu abria a porta. Que foi que viu? Ai Jesus, viu na sua frente uma enorme cabeçorra deste tamanho, assim, e vai ele atirou-se a ela como um leão para a devorar, sorte foi ela ter conseguido fechar a porta, porém não tão depressa que o porco, ao abocar, lhe não tivesse arrancado um bocado da saia. Ora agora imagine-se o horror da infeliz, quando o árido voltou para casa, já de madrugada, trazia na boca o bocado de pano arrancado,. O que valeu é que tudo ficou explicado, ele contou-lhe que de todas as vezes que saía se transformava num animal, e daquela fora um porco, e que lhe podia ter feito mal, para a outra vez não abrisse a porta, que ele não podia responder por si. Grande caso, a mulher foi falar aos sogros, que ficaram muito incomodados por filho seu ter dado em lobisomen, não havia outro na família, e então procuraram uma virtuosa que lá fez as rezas e os esconjuros próprios para estes acidentes e disse que lhe queimassem a copa quando ele estivesse transformado em lobisomen, que nunca mais tornaria, e assim foi, remédio santo, queimaram-lhe o chapéu e curou-se. Seria porque sendo o mal na cabeça, sarava-se queimando o chapéu ? Isso não sei, que a mulherzinha não me disse, mas ainda lhe conto outro caso. Aqui bem perto do Ciborro viveu há pouco tempo um casal numa quinta, são tudo acontecidos de entre marido e mulher, porque será? Esses criavam galinhas e outros animais de capoeira, e então todas as noites o marido, este era todas as noites, levantava-se da cama, ia para o quintal e punha-se a cacarejar, imagine para o que lhe daria, quando a mulher o espreitava do postigo via-o transformado numa galinha muito grande. Do tamanho do porco. Ah, não acredita, então ouça o resto. Este casal tinha uma filha como a filha ia casar, mataram muitas galinhas para a boda. Era a riqueza deles, mas nessa noite a mulher não sentiu levantar-se o marido nem o ouviu cacarejar. Não calcula o que tinha sucedido, o homem foi ao sítio onde tinham matado as galinhas, pegou numa faca, ajoelhou-se ao pé do alguidar e enterrou a faca na garganta, ali se ficou. Quando a mulher deu com a cama vazia e foi à procura do marido, encontrou-o já sem vida e o sangue às golfadas. São os fados, é o que lhe digo. (Pág. 43)
E os fados? Correm os lobisomens por encruzilhadas, má sina que lhes vem, meus senhores, não saberei de que mistérios, são encantamentos, em dia certo da semana saem de suas casas e na primeira cruz dos caminhos despem-se e rojam-se no chão, espojam-se, transformando-se na causa do rasto que por ali há. Qualquer rasto, ou só de animal mamífero? Qualquer rasto, meu senhor, que até uma vez houve um homem que se transformava em roda de carro, andava por aí a girar, a girar, uma aflição, mas o mais de costume é tornarem-se bichos, como foi o caso muito falado e verdadeiro daquele homem, não me lembro é o nome, que morava com a mulher no Monte do Curral da Légua, para as bandas da Pedra Grande, e o fado dele era sair todas as noites de Terça Feira, mas esse sabia do seu estado e por isso avisava a mulher que nunca abrisse a porta quando ele estivesse por fora, ouvisse ela o que ouvisse, e nessas alturas eram gritos e barulhos que faziam gelar o sangue a um cristão, ninguém era que dormisse, mas uma vez a mulher encheu-se de coragem, é que as mulheres são muito curiosas, tudo querem averiguar, e resolveu abria a porta. Que foi que viu? Ai Jesus, viu na sua frente uma enorme cabeçorra deste tamanho, assim, e vai ele atirou-se a ela como um leão para a devorar, sorte foi ela ter conseguido fechar a porta, porém não tão depressa que o porco, ao abocar, lhe não tivesse arrancado um bocado da saia. Ora agora imagine-se o horror da infeliz, quando o árido voltou para casa, já de madrugada, trazia na boca o bocado de pano arrancado,. O que valeu é que tudo ficou explicado, ele contou-lhe que de todas as vezes que saía se transformava num animal, e daquela fora um porco, e que lhe podia ter feito mal, para a outra vez não abrisse a porta, que ele não podia responder por si. Grande caso, a mulher foi falar aos sogros, que ficaram muito incomodados por filho seu ter dado em lobisomen, não havia outro na família, e então procuraram uma virtuosa que lá fez as rezas e os esconjuros próprios para estes acidentes e disse que lhe queimassem a copa quando ele estivesse transformado em lobisomen, que nunca mais tornaria, e assim foi, remédio santo, queimaram-lhe o chapéu e curou-se. Seria porque sendo o mal na cabeça, sarava-se queimando o chapéu ? Isso não sei, que a mulherzinha não me disse, mas ainda lhe conto outro caso. Aqui bem perto do Ciborro viveu há pouco tempo um casal numa quinta, são tudo acontecidos de entre marido e mulher, porque será? Esses criavam galinhas e outros animais de capoeira, e então todas as noites o marido, este era todas as noites, levantava-se da cama, ia para o quintal e punha-se a cacarejar, imagine para o que lhe daria, quando a mulher o espreitava do postigo via-o transformado numa galinha muito grande. Do tamanho do porco. Ah, não acredita, então ouça o resto. Este casal tinha uma filha como a filha ia casar, mataram muitas galinhas para a boda. Era a riqueza deles, mas nessa noite a mulher não sentiu levantar-se o marido nem o ouviu cacarejar. Não calcula o que tinha sucedido, o homem foi ao sítio onde tinham matado as galinhas, pegou numa faca, ajoelhou-se ao pé do alguidar e enterrou a faca na garganta, ali se ficou. Quando a mulher deu com a cama vazia e foi à procura do marido, encontrou-o já sem vida e o sangue às golfadas. São os fados, é o que lhe digo. (Pág. 43)
(Extracto do Livro «Levantado do Chão» de José Saramago - 1980)
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