quarta-feira, 30 de setembro de 2009

A TESOURINHA DA MOURA


Ali para os lados de Mértola, aconteceu, certa vez, um caso fantástico e temeroso provocado por uma moura encantada.
Vinha um homem do amanho do campo, de enxada ao ombro, quando ao passar pelo sítio da Mortilhera viu uma cobra que da cintura para cima tinha corpo de mulher. A cobra, que era uma moura encantada, meteu-se a conversar com o homem, e o homem cheio de medo, a suar e a limpar o suor com o lenço.
A moura foi perguntando ao homem como lhe corria a vida, que tal as colheitas, se a seara era dele ou se tinha patrão, e muitas outras coisas com as quais talvez viesse a entreter-se nos longos serões que de Inverno era obrigada a passar sozinha debaixo da terra. Quando acabou de saber tudo o que a interessava, a moura estendeu ao homem um capacho com figos secos, que estava a seu lado, dizendo-lhe que tirasse quantos quisesse.
O homem, que durante todo o tempo da conversa suara frio, de medo e nervos, tirou meia dúzia de figos e meteu-os na algibeira do colete. Despediu-se da cobra com alguns salamaleques e partiu aliviado e desejoso de se ver bem longe dali.
Ao chegar a casa contou à mulher o que lhe acontecera e por fim, quando ia a tirar os figos do bolso do colete, encontrou no lugar deles seis moedas de ouro. A mulher desatou logo a ralhar com ele:
- Ó homem, pois então a moura dá-te figos que são ouro e tu só trazes isto?! Valha-te Deus, que estás mas é a ficar taralhouco! Vai mas é buscar o resto, antes que a cobra volte à cova, vai depressa, ouviste?!
O homem, que não sabia bem se havia de temer mais o bicho ou a mulher, lá foi, dizendo mal à sua vida. E quando passou pela cobra, disse-lhe, para que ela não desconfiasse:
- Adeus, senhora moura! Vou outra vez ao campo, que me esqueci de uma coisa!
Mas a moura sabia tudo:
- Não vais, não! Não te esqueceste de nada, o que tu querias era mais figos, mas já não há! Olha, leva daqui qualquer coisa que te sirva.
E estendeu ao homem o seu açafate da costura, donde ele sacou uma tesourinha com cabos de ouro e pedras preciosas. Partiu e a moura ficou a dizer-lhe adeus com um estranho sorriso.
A caminho de casa, o homem, que ia distraído com os seus pensamentos, escorregou à beira de uma ladeira, caiu, espetou a tesoura no peito e morreu...
Assim acontece quando os encontros com mouras não são mantidos em segredo!



In «Lendas Portuguesas» - Vol.V - Fernanda Frazão

















segunda-feira, 28 de setembro de 2009

Diálogo Com a Morte


«Os que vão morrer ensinam-nos a viver»

A morte foi sempre um tema que, não sei bem porquê, desde muito jovem, me fascinou.
Tendo lido recentemente o livro «Diálogo Com a Morte», onde a sua autora Maria de Hennezel, de nacionalidade francesa, procura transmitir-nos a sua mensagem de que «Os que vão morrer ensinam-nos a viver», acicatou ainda mais o meu interesse por este assunto. Em boa hora, diga-se, o fiz, pela relação que o mesmo tem com a minha actual função no Hospital Garcia de Orta e pelos conhecimentos que me permitiu adquirir sobre este assunto tão importante.
Foi assim que, após a sua leitura e uma reflexão sobre as mui importantes ideias e conceitos nele expostos, achei que deveria partilhá-los, ainda que num breve resumo, fazendo dele a minha base de trabalho que entretanto me foi requerido...
Aponta a autora como razão principal que a levou a escrever este livro, fruto da sua experiência como psicóloga junto dos doentes terminais que, «a sociedade ocidental precisa de rever as suas atitudes perante a morte, abandonando o medo e aceitando-a como uma fase do processo de vida».
É na verdade muito importante respeitar a dignidade daqueles que se aproximam da morte, fazendo-os sentir seres humanos até ao fim, evitando que, por desespero, «queiram abreviar os últimos momentos que têm para partilhar a sua experiência e exigir um encontro significativo com o outro».
Questões muito importantes se levantaram então na minha mente:
·É a forma de relacionamento com os que vão partir importante?
·Que dizer?
·Como escutar?
·Que transformações profundas nos ocorrem na eminência da morte?
·Durante a nossa última caminhada espiritual deve-se recorrer a mentiras piedosas?
·A morte é triste?
·Como morrer?

Medito e questiono-me:
- Porque vivemos num mundo aterrado por estas interrogações, e que lhe vira as costas? Com que medo ou receio? Se é um facto reconhecido que, antes da nossa, houveram civilizações que encararam a morte de frente, traçando para a comunidade e para cada um caminho de passagem?!
Nunca, no meu entender, a relação com a morte terá sido tão pobre como nestes tempos de aridez espiritual em que os homens, na pressa de existir, parecem sofismar o mistério, ignorando que desse modo, secam uma fonte essencial do gosto de viver. Pois se até é a única certeza que temos!...
Embarcar nesta aventura quotidiana da descoberta do outro, o compromisso do amor e da compaixão, a coragem dos gestos de ternura para com esses corpos alterados (como amanhã serão os nossos), nesse poder de eliminar a angústia, de instaurar a paz, sobre a transformação profunda que se observa em certos seres à beira da morte, é na verdade, uma tarefa gigantesca!
É nesse momento de maior solidão, em que o corpo se encontra debruçado à beira do infinito, que se estabelece um outro tempo fora das medidas habituais. Por vezes, no espaço de dias, graças à ajuda de uma presença que permite que o desespero e a dor se exprimam, os doentes entendem a sua própria vida, apropriam-se dela, manifestam a sua verdade. Descobrem a liberdade de aderir a si próprios. É como se, na altura em que tudo finda, tudo se libertasse por fim, do amontoado das penas e das ilusões que impedem de nos pertencermos. O mistério de existir e de morrer não fica de modo algum esclarecido, mas é plenamente vida.
E outras perguntas me ocorrem à mente:
* Será que a proximidade da morte pode fazer com que uma pessoa se torne naquilo para que foi chamada a ser, isto é, uma realização?
* Não haverá no homem uma parte de eternidade, algo que a morte gera, faz nascer algures?
Quando, com a certa altura nos é referido pela autora, um doente, no seu lado de paralítico, imobilizado, nos transmite a sua «última mensagem» dizendo: «Não creio nem num Deus de justiça, nem num Deus de amor. É demasiado humano para ser verdadeiro. Que falta de imaginação! Mas isso não me leva a crer que sejamos apenas reduzíveis a uma faixa de átomos. O que implica que existe algo além da matéria, chamemos-lhe alma ou espírito ou consciência, o que se quiser. Eu creio nessa eternidade. Reencarnação ou o acesso a um outro nível totalmente diferente…

Quem morrer verá!» - que lição procura deixar-nos?


Que sente o corpo dominado pelo espírito, a angústia vencida pela confiança, a plenitude do destino cumprido?


Que bela lição de vida! Que fortíssima densidade humana está nele contida!
Como morrer?

Se existe uma resposta, poucos testemunhos a poderão inspirar com tanta energia como os que encontrei descritos nesta obra. A morte não deve ser escondida, como se fosse vergonhosa e suja. Vemos nela apenas horror, absurdo, sofrimento inútil e penoso, o que no meu entender é um erro. Deixo à vossa reflexão.


Anabela Moisaão - Ano 2005

domingo, 27 de setembro de 2009

Levantado do Chão (3)


Para não faltar ao outro sabido costume, a António Mau-tempo mal lhe pesa o farnel que leva para o dia todo, um banquete de meio carapau e um bocado de pão de milho. Logo ao sair de casa, carapau viste-lo tu, porque há fomes que não podem esperar, e esta é velha. Fica o pão de milho para o resto do dia, migalho agora, logo migalho, escarrapatada (raspada) a côdea com mil cautelas para que nem um cibozinho (pequena porção, migalho) se perca entre as ervas do chão, onde as formigas, de focinho no ar como se fossem cães, desesperam de abastecer o celeiro com tais sobras e desprezos. Parava-se o maioral num arneiro, em sua autoridade de maioral, e punha-se aos gritos. Ó rapaz, vai além àquele lado,, ó rapaz, ampara aí os animais, e António Mau-Tempo, vassourinha de varrer, girava em redor da vara com se fosse, ele, cão de pastor… (Pág.87)

Que os trabalhos de homem são muitos. Já ficaram ditos alguns e outros agora se acrescentam para ilustração geral, que as pessoas da cidade cuidam, em sua ignorância, que tudo é semear e colher, pois muito enganadas vivem se não aprenderem a dizer as palavras todas e a entender o que elas são: ceifar, carregar molhos, gadanhar, debulhar à máquina ou a sangue, malhar o centeio, tapar o palheiro, enfardar a palha ou o feno, malhar o milho, desmontar, espalhar o adubo, semear cereais, lavrar, cortar, arrotear, cavar o milho, tapar as craveiras, podar, argolar, rabocar, escavar, montear (caçar no monte), abrir as covatas (buracos fundos para os bacelos) para estrume ou Bacelo, abrir valas, enxertar as vinhas, tapar a enxertia, sulfatar, carregar as uvas, trabalhar nas adegas, trabalhar nas hortas, cavar a terra para os legumes, varejar a azeitona, trabalhar nos lagares de azeite, tirar a cortiça, tosquiar o gado, trabalhar em poços, trabalhar em brocas e barrancos, chacotar a lenha, rechegar (prender os animais aos arados com os arreios), enfornar, terrear (limpar os terrenos das ervas daninhas), empoar e ensacar, o que aqui vai, santo Deus, de palavras, tão bonitas, tão de enriquecer os léxicos, bem-aventurados os que trabalham, e que faria então se nos puséssemos a explicar como se faz cada trabalho e em que época, os instrumentos, os apeiros (apetrechos de lavoura), e se é obra para homem ou para mulher e porquê… (Pág.90)

Um dia, se não desistirmos, saberemos todos que coisas são estas e a distância que vai das palavras que as tentam explicar, a distância que vai dessas palavras ao ser que as ditas coisas são. Só escrito assim parece complicado.
Também complicada, por exemplo, parece esta máquina, e é tão simples. Chamam-lhe debulhadora, nome desta vez bem posto, porque precisamente é isso que faz, tira os grãos da espiga, palha para um lado, cereal para outro. Vista de fora, é uma grande caixa de madeira sobre rodas de ferro, ligada por uma correia a um motor que trepida, retumba e, com perdão, fede. Pintaram-na de amarelo gema de ovo, mas a poeira e o sol bruto quebraram-lhe a cor, e agora mais parece um acidente do terreno, ao lado doutro que são os frascais (palheiros), e com este sol nem se distingue bem, não há nada que esteja quieto, é o motor a saltar, a debulhadora a vomitar palha e grãos, a correia frouxa a oscilar, e o ar vibrando como se todo ele fosse o reflexo do sol num espelho agitado no céu por mãozinhas de anjos que não têm mais que fazer. Há uns vultos no meio desta névoa. Estiveram todo o dia nisto, e ontem, anteontem, e mais para trás, desde que a debulha começou, são cinco, um mais velho, quatro de pouca idade, que para esta violentação não deveriam bastar os dezassete, dezoito anos que têm. Dormem na eira, na revessa (junção) dos fardos, mas é noite fechada quando o motor se cala e ainda vem longe o sol quando se ouve o primeiro tiro daquela besta que se alimenta de bidões dum líquido preto e pegajoso, e depois, todo o santo dia, diabos o levem, matraqueia os ouvidos. É ele que marca a cadência do trabalho, a debulhadora não pode mastigar em falso, dá-se logo por isso, vem o capataz de resguardo e brama. A boca da máquina é um vulcão para dentro, um gasgarro (boca enorme) de gigante, e é o mais velho dos cinco que mais tempo a alimenta. Os outros fazem subir os frascais , giram como doidos naquela perdição de palha miúda, levam o trigo seco e áspero, os caules rijos, a espiga barbaçuda, o pó, onde vai já o verde tenríssimo da seara quando é primavera e a terra parece realmente o paraíso.
A água que se bebe do quartão (a quarta parte de um almude, ou seja de 25 litros) não tarda que fique mole, doentia, como se eu agora a estivesse a beber de um brejo, de borco, quero lá saber de vermes e bichas, que é esse o nome que damos aqui às sanguessugas… (Pág100)

Quem vive na cidade criou-se com desconfianças, por dá cá aquelas palhas exige logo provas e juramentos, é mal feito, devemos acreditar nas coisa como nos são ditas, foi o caso daquela vez em que António Mau-Tempo, já então proprietário da agora falada espingarda de carregar pela boca, tinha pólvora para a carregar, mas faltava-lhe o chumbo. Era então a época dos coelhos, tem de dizer-se já, para que não apareça aí alguém a perguntar por que não usava António Mau-Tempo o sistema da pedra, da pimenta e do jornal como fazia para as lebres. Só ignorantes da arte da caça não sabem que os coelhos são bichos sem qualquer espécie de curiosidade, ver um jornal no chão ou uma nuvem no céu, para eles é tudo o mesmo, salvo que da nuvem chove e do jornal não, por isso não se pode dispensar a espingarda ou o laço ou o pau, mas agora estamos a falar de espingardas.
Não há decerto maior desventura do que esta de ter o caçador uma boa arma, mesmo de pederneira, pólvora em quantidade, e faltar-lhe o chumbo. Porque é que não o foi comprar. Não tinha dinheiro, esse é que era o mal. Então como é que fez? Primeiro não fiz nada, pus-me a pensar. E descobriu ? Descobri, pensando descobre-se sempre. Explique-me lá como é que resolveu a dificuldade, sempre estou para ver. Tinha aí um cartucho de cardas para as botas e carreguei com elas a espingarda. O quê, carregou a espingarda com cardas? Sim senhor, se calhar não acredita. Acredito, porém nunca tal ouvi. Alguma vez terá de começar a acreditar naquilo que nunca ouviu. Conte lá então o resto, Já eu ia no campo quando me veio uma ideia que esteve quase a fazer-me voltar para trás. O quê? É verdade, lembrei-me de que um coelho apanhado pela carga de cardas ia ficar feito numa pasta de sangue, todo esfrangalhado nem se ia poder comer. E daí, pus-me outra vez a pensar. E descobriu? Descobri, pensando descobre-se sempre, coloquei-me na direcção de uma árvore de tronco grosso que ali havia e esperei. Esperou muito? Esperei o que foi preciso, nunca se espera demais nem de menos, até que veio o coelho, sim senhor, assim que deu por mim largou a correr na direcção da árvore, eu tinha estudado o terreno, e quando ele passou rente, trás, lá vai o tiro. Então não ficou esfarrapado? Qual quê, para que é que eu tinha estado a pensar, não me dirá? As cardas apanharam-no pelas orelhas e pregaram-no ao tronco da azinheira, era uma azinheira, por sinal. Essa é boa. É boa, é, foi só dar-lhe um soco no cachaço e tirar as cardas, que até quando comi o coelho já tinha as botas cardeadas de novo.
São os homens feitos de maneira que mesmo quando mentem dizem outra verdade, e se pelo contrário é a verdade que querem lançar da boca para fora, vai sempre com ela uma forma de mentir, mesmo não havendo o propósito… (Pág.284)

Então outra voz, vem dali, sobre a sombra da noite cai uma sombra que não se sabe donde vem, que ideia lhe lembrou, não está a falar das oito horas de trabalho nem do salário de quarenta escudos, estes é que são os assuntos para que a reunião foi convocada, porém ninguém tem alma de interromper. Eles sempre quiseram baixar-nos a dignidade, e ouvindo eles todos entendem o que foi dito, eles são a guarda, a pide, é o latifúndio e seu dono Alberto ou Dagoberto, o dragão e o capitão, a fominha de dentes e o osso partido, a ânsia e a quebradura. Quiseram baixar-nos a dignidade, não pode ser mais assim, tem de acabar, ouçam todos isto que aconteceu comigo e com o meu pai que já morreu, foi um segredo de nós dois, mas hoje não posso ficar calado, se os camaradas não se convencerem com este caso, então não há mais nada a fazer, estamos perdidos. Uma vez há muitos anos, estava assim uma noite escura como esta, o meu Pai foi comigo, fui eu com ele apanhar bolotas para comermos, não havia nada em casa....já tínhamos o taleigo quase cheio apareceu a guarda...e disse, não vale a pena dizer o que eles disseram, já nem me lembro bem, chamaram-nos nomes... disseram que podíamos ficar com a bolota, mas com uma condição, brigarmos um com o outro para eles verem, e então o meu Pai respondeu que não ia brigar com o seu próprio filho, mas eles disseram que sendo assim íamos para o posto, pagávamos a multa e talvez levássemos uns aconchegos pelas costas abaixo... e então o meu Pai respondeu que estava bem, íamos brigar...e então o meu Pai deu-me um encontrão, e eu a fingir deixei-me cair, era a ver se os enganávamos, julgávamos nós, mas eles disseram que ou brigávamos a sério, a aleijar, ou íamos presos... o meu Pai ficou desesperado, e bateu-me, doeu-me tanto, não foi a força da pancada, e eu dei-lhe troco da mesma maneira, e daí a uns minutos andávamos a rebolar pelo chão os guardas riam como uns perdidos, e uma vez que pus a mão na cara do meu Pai senti-a molhada, não era suor...
Quando demos por nós estávamos sozinhos, os guardas tinham-se ido embora, acho eu que por desprezo, era o que merecíamos e então o meu pai começou a chorar e eu embalei-o como se ele fosse uma criança, jurei que nunca haveria de contar a ninguém, mas hoje não podia ficar calado… (Pág. 336)




Para não faltar ao outro sabido costume, a António Mau-tempo mal lhe pesa o farnel que leva para o dia todo, um banquete de meio carapau e um bocado de pão de milho. Logo ao sair de casa, carapau viste-lo tu, porque há fomes que não podem esperar, e esta é velha. Fica o pão de milho para o resto do dia, migalho agora, logo migalho, escarrapatada (raspada) a côdea com mil cautelas para que nem um cibozinho (pequena porção, migalho) se perca entre as ervas do chão, onde as formigas, de focinho no ar como se fossem cães, desesperam de abastecer o celeiro com tais sobras e desprezos. Parava-se o maioral num arneiro, em sua autoridade de maioral, e punha-se aos gritos. Ó rapaz, vai além àquele lado,, ó rapaz, ampara aí os animais, e António Mau-Tempo, vassourinha de varrer, girava em redor da vara com se fosse, ele, cão de pastor… (Pág.87)

Que os trabalhos de homem são muitos. Já ficaram ditos alguns e outros agora se acrescentam para ilustração geral, que as pessoas da cidade cuidam, em sua ignorância, que tudo é semear e colher, pois muito enganadas vivem se não aprenderem a dizer as palavras todas e a entender o que elas são: ceifar, carregar molhos, gadanhar, debulhar à máquina ou a sangue, malhar o centeio, tapar o palheiro, enfardar a palha ou o feno, malhar o milho, desmontar, espalhar o adubo, semear cereais, lavrar, cortar, arrotear, cavar o milho, tapar as craveiras, podar, argolar, rabocar, escavar, montear (caçar no monte), abrir as covatas (buracos fundos para os bacelos) para estrume ou Bacelo, abrir valas, enxertar as vinhas, tapar a enxertia, sulfatar, carregar as uvas, trabalhar nas adegas, trabalhar nas hortas, cavar a terra para os legumes, varejar a azeitona, trabalhar nos lagares de azeite, tirar a cortiça, tosquiar o gado, trabalhar em poços, trabalhar em brocas e barrancos, chacotar a lenha, rechegar (prender os animais aos arados com os arreios), enfornar, terrear (limpar os terrenos das ervas daninhas), empoar e ensacar, o que aqui vai, santo Deus, de palavras, tão bonitas, tão de enriquecer os léxicos, bem-aventurados os que trabalham, e que faria então se nos puséssemos a explicar como se faz cada trabalho e em que época, os instrumentos, os apeiros (apetrechos de lavoura), e se é obra para homem ou para mulher e porquê… (Pág.90)

Um dia, se não desistirmos, saberemos todos que coisas são estas e a distância que vai das palavras que as tentam explicar, a distância que vai dessas palavras ao ser que as ditas coisas são. Só escrito assim parece complicado.
Também complicada, por exemplo, parece esta máquina, e é tão simples. Chamam-lhe debulhadora, nome desta vez bem posto, porque precisamente é isso que faz, tira os grãos da espiga, palha para um lado, cereal para outro. Vista de fora, é uma grande caixa de madeira sobre rodas de ferro, ligada por uma correia a um motor que trepida, retumba e, com perdão, fede. Pintaram-na de amarelo gema de ovo, mas a poeira e o sol bruto quebraram-lhe a cor, e agora mais parece um acidente do terreno, ao lado doutro que são os frascais (palheiros), e com este sol nem se distingue bem, não há nada que esteja quieto, é o motor a saltar, a debulhadora a vomitar palha e grãos, a correia frouxa a oscilar, e o ar vibrando como se todo ele fosse o reflexo do sol num espelho agitado no céu por mãozinhas de anjos que não têm mais que fazer. Há uns vultos no meio desta névoa. Estiveram todo o dia nisto, e ontem, anteontem, e mais para trás, desde que a debulha começou, são cinco, um mais velho, quatro de pouca idade, que para esta violentação não deveriam bastar os dezassete, dezoito anos que têm. Dormem na eira, na revessa (junção) dos fardos, mas é noite fechada quando o motor se cala e ainda vem longe o sol quando se ouve o primeiro tiro daquela besta que se alimenta de bidões dum líquido preto e pegajoso, e depois, todo o santo dia, diabos o levem, matraqueia os ouvidos. É ele que marca a cadência do trabalho, a debulhadora não pode mastigar em falso, dá-se logo por isso, vem o capataz de resguardo e brama. A boca da máquina é um vulcão para dentro, um gasgarro (boca enorme) de gigante, e é o mais velho dos cinco que mais tempo a alimenta. Os outros fazem subir os frascais , giram como doidos naquela perdição de palha miúda, levam o trigo seco e áspero, os caules rijos, a espiga barbaçuda, o pó, onde vai já o verde tenríssimo da seara quando é primavera e a terra parece realmente o paraíso.
A água que se bebe do quartão (a quarta parte de um almude, ou seja de 25 litros) não tarda que fique mole, doentia, como se eu agora a estivesse a beber de um brejo, de borco, quero lá saber de vermes e bichas, que é esse o nome que damos aqui às sanguessugas… (Pág100)

Quem vive na cidade criou-se com desconfianças, por dá cá aquelas palhas exige logo provas e juramentos, é mal feito, devemos acreditar nas coisa como nos são ditas, foi o caso daquela vez em que António Mau-Tempo, já então proprietário da agora falada espingarda de carregar pela boca, tinha pólvora para a carregar, mas faltava-lhe o chumbo. Era então a época dos coelhos, tem de dizer-se já, para que não apareça aí alguém a perguntar por que não usava António Mau-Tempo o sistema da pedra, da pimenta e do jornal como fazia para as lebres. Só ignorantes da arte da caça não sabem que os coelhos são bichos sem qualquer espécie de curiosidade, ver um jornal no chão ou uma nuvem no céu, para eles é tudo o mesmo, salvo que da nuvem chove e do jornal não, por isso não se pode dispensar a espingarda ou o laço ou o pau, mas agora estamos a falar de espingardas.
Não há decerto maior desventura do que esta de ter o caçador uma boa arma, mesmo de pederneira, pólvora em quantidade, e faltar-lhe o chumbo. Porque é que não o foi comprar. Não tinha dinheiro, esse é que era o mal. Então como é que fez? Primeiro não fiz nada, pus-me a pensar. E descobriu ? Descobri, pensando descobre-se sempre. Explique-me lá como é que resolveu a dificuldade, sempre estou para ver. Tinha aí um cartucho de cardas para as botas e carreguei com elas a espingarda. O quê, carregou a espingarda com cardas? Sim senhor, se calhar não acredita. Acredito, porém nunca tal ouvi. Alguma vez terá de começar a acreditar naquilo que nunca ouviu. Conte lá então o resto, Já eu ia no campo quando me veio uma ideia que esteve quase a fazer-me voltar para trás. O quê? É verdade, lembrei-me de que um coelho apanhado pela carga de cardas ia ficar feito numa pasta de sangue, todo esfrangalhado nem se ia poder comer. E daí, pus-me outra vez a pensar. E descobriu? Descobri, pensando descobre-se sempre, coloquei-me na direcção de uma árvore de tronco grosso que ali havia e esperei. Esperou muito? Esperei o que foi preciso, nunca se espera demais nem de menos, até que veio o coelho, sim senhor, assim que deu por mim largou a correr na direcção da árvore, eu tinha estudado o terreno, e quando ele passou rente, trás, lá vai o tiro. Então não ficou esfarrapado? Qual quê, para que é que eu tinha estado a pensar, não me dirá? As cardas apanharam-no pelas orelhas e pregaram-no ao tronco da azinheira, era uma azinheira, por sinal. Essa é boa. É boa, é, foi só dar-lhe um soco no cachaço e tirar as cardas, que até quando comi o coelho já tinha as botas cardeadas de novo.
São os homens feitos de maneira que mesmo quando mentem dizem outra verdade, e se pelo contrário é a verdade que querem lançar da boca para fora, vai sempre com ela uma forma de mentir, mesmo não havendo o propósito… (Pág.284)

Então outra voz, vem dali, sobre a sombra da noite cai uma sombra que não se sabe donde vem, que ideia lhe lembrou, não está a falar das oito horas de trabalho nem do salário de quarenta escudos, estes é que são os assuntos para que a reunião foi convocada, porém ninguém tem alma de interromper. Eles sempre quiseram baixar-nos a dignidade, e ouvindo eles todos entendem o que foi dito, eles são a guarda, a pide, é o latifúndio e seu dono Alberto ou Dagoberto, o dragão e o capitão, a fominha de dentes e o osso partido, a ânsia e a quebradura. Quiseram baixar-nos a dignidade, não pode ser mais assim, tem de acabar, ouçam todos isto que aconteceu comigo e com o meu pai que já morreu, foi um segredo de nós dois, mas hoje não posso ficar calado, se os camaradas não se convencerem com este caso, então não há mais nada a fazer, estamos perdidos. Uma vez há muitos anos, estava assim uma noite escura como esta, o meu Pai foi comigo, fui eu com ele apanhar bolotas para comermos, não havia nada em casa....já tínhamos o taleigo quase cheio apareceu a guarda...e disse, não vale a pena dizer o que eles disseram, já nem me lembro bem, chamaram-nos nomes... disseram que podíamos ficar com a bolota, mas com uma condição, brigarmos um com o outro para eles verem, e então o meu Pai respondeu que não ia brigar com o seu próprio filho, mas eles disseram que sendo assim íamos para o posto, pagávamos a multa e talvez levássemos uns aconchegos pelas costas abaixo... e então o meu Pai respondeu que estava bem, íamos brigar...e então o meu Pai deu-me um encontrão, e eu a fingir deixei-me cair, era a ver se os enganávamos, julgávamos nós, mas eles disseram que ou brigávamos a sério, a aleijar, ou íamos presos... o meu Pai ficou desesperado, e bateu-me, doeu-me tanto, não foi a força da pancada, e eu dei-lhe troco da mesma maneira, e daí a uns minutos andávamos a rebolar pelo chão os guardas riam como uns perdidos, e uma vez que pus a mão na cara do meu Pai senti-a molhada, não era suor...
Quando demos por nós estávamos sozinhos, os guardas tinham-se ido embora, acho eu que por desprezo, era o que merecíamos e então o meu pai começou a chorar e eu embalei-o como se ele fosse uma criança, jurei que nunca haveria de contar a ninguém, mas hoje não podia ficar calado… (Pág. 336)




Para não faltar ao outro sabido costume, a António Mau-tempo mal lhe pesa o farnel que leva para o dia todo, um banquete de meio carapau e um bocado de pão de milho. Logo ao sair de casa, carapau viste-lo tu, porque há fomes que não podem esperar, e esta é velha. Fica o pão de milho para o resto do dia, migalho agora, logo migalho, escarrapatada (raspada) a côdea com mil cautelas para que nem um cibozinho (pequena porção, migalho) se perca entre as ervas do chão, onde as formigas, de focinho no ar como se fossem cães, desesperam de abastecer o celeiro com tais sobras e desprezos. Parava-se o maioral num arneiro, em sua autoridade de maioral, e punha-se aos gritos. Ó rapaz, vai além àquele lado,, ó rapaz, ampara aí os animais, e António Mau-Tempo, vassourinha de varrer, girava em redor da vara com se fosse, ele, cão de pastor… (Pág.87)

Que os trabalhos de homem são muitos. Já ficaram ditos alguns e outros agora se acrescentam para ilustração geral, que as pessoas da cidade cuidam, em sua ignorância, que tudo é semear e colher, pois muito enganadas vivem se não aprenderem a dizer as palavras todas e a entender o que elas são: ceifar, carregar molhos, gadanhar, debulhar à máquina ou a sangue, malhar o centeio, tapar o palheiro, enfardar a palha ou o feno, malhar o milho, desmontar, espalhar o adubo, semear cereais, lavrar, cortar, arrotear, cavar o milho, tapar as craveiras, podar, argolar, rabocar, escavar, montear (caçar no monte), abrir as covatas (buracos fundos para os bacelos) para estrume ou Bacelo, abrir valas, enxertar as vinhas, tapar a enxertia, sulfatar, carregar as uvas, trabalhar nas adegas, trabalhar nas hortas, cavar a terra para os legumes, varejar a azeitona, trabalhar nos lagares de azeite, tirar a cortiça, tosquiar o gado, trabalhar em poços, trabalhar em brocas e barrancos, chacotar a lenha, rechegar (prender os animais aos arados com os arreios), enfornar, terrear (limpar os terrenos das ervas daninhas), empoar e ensacar, o que aqui vai, santo Deus, de palavras, tão bonitas, tão de enriquecer os léxicos, bem-aventurados os que trabalham, e que faria então se nos puséssemos a explicar como se faz cada trabalho e em que época, os instrumentos, os apeiros (apetrechos de lavoura), e se é obra para homem ou para mulher e porquê… (Pág.90)

Um dia, se não desistirmos, saberemos todos que coisas são estas e a distância que vai das palavras que as tentam explicar, a distância que vai dessas palavras ao ser que as ditas coisas são. Só escrito assim parece complicado.
Também complicada, por exemplo, parece esta máquina, e é tão simples. Chamam-lhe debulhadora, nome desta vez bem posto, porque precisamente é isso que faz, tira os grãos da espiga, palha para um lado, cereal para outro. Vista de fora, é uma grande caixa de madeira sobre rodas de ferro, ligada por uma correia a um motor que trepida, retumba e, com perdão, fede. Pintaram-na de amarelo gema de ovo, mas a poeira e o sol bruto quebraram-lhe a cor, e agora mais parece um acidente do terreno, ao lado doutro que são os frascais (palheiros), e com este sol nem se distingue bem, não há nada que esteja quieto, é o motor a saltar, a debulhadora a vomitar palha e grãos, a correia frouxa a oscilar, e o ar vibrando como se todo ele fosse o reflexo do sol num espelho agitado no céu por mãozinhas de anjos que não têm mais que fazer. Há uns vultos no meio desta névoa. Estiveram todo o dia nisto, e ontem, anteontem, e mais para trás, desde que a debulha começou, são cinco, um mais velho, quatro de pouca idade, que para esta violentação não deveriam bastar os dezassete, dezoito anos que têm. Dormem na eira, na revessa (junção) dos fardos, mas é noite fechada quando o motor se cala e ainda vem longe o sol quando se ouve o primeiro tiro daquela besta que se alimenta de bidões dum líquido preto e pegajoso, e depois, todo o santo dia, diabos o levem, matraqueia os ouvidos. É ele que marca a cadência do trabalho, a debulhadora não pode mastigar em falso, dá-se logo por isso, vem o capataz de resguardo e brama. A boca da máquina é um vulcão para dentro, um gasgarro (boca enorme) de gigante, e é o mais velho dos cinco que mais tempo a alimenta. Os outros fazem subir os frascais , giram como doidos naquela perdição de palha miúda, levam o trigo seco e áspero, os caules rijos, a espiga barbaçuda, o pó, onde vai já o verde tenríssimo da seara quando é primavera e a terra parece realmente o paraíso.
A água que se bebe do quartão (a quarta parte de um almude, ou seja de 25 litros) não tarda que fique mole, doentia, como se eu agora a estivesse a beber de um brejo, de borco, quero lá saber de vermes e bichas, que é esse o nome que damos aqui às sanguessugas… (Pág100)

Quem vive na cidade criou-se com desconfianças, por dá cá aquelas palhas exige logo provas e juramentos, é mal feito, devemos acreditar nas coisa como nos são ditas, foi o caso daquela vez em que António Mau-Tempo, já então proprietário da agora falada espingarda de carregar pela boca, tinha pólvora para a carregar, mas faltava-lhe o chumbo. Era então a época dos coelhos, tem de dizer-se já, para que não apareça aí alguém a perguntar por que não usava António Mau-Tempo o sistema da pedra, da pimenta e do jornal como fazia para as lebres. Só ignorantes da arte da caça não sabem que os coelhos são bichos sem qualquer espécie de curiosidade, ver um jornal no chão ou uma nuvem no céu, para eles é tudo o mesmo, salvo que da nuvem chove e do jornal não, por isso não se pode dispensar a espingarda ou o laço ou o pau, mas agora estamos a falar de espingardas.
Não há decerto maior desventura do que esta de ter o caçador uma boa arma, mesmo de pederneira, pólvora em quantidade, e faltar-lhe o chumbo. Porque é que não o foi comprar. Não tinha dinheiro, esse é que era o mal. Então como é que fez? Primeiro não fiz nada, pus-me a pensar. E descobriu ? Descobri, pensando descobre-se sempre. Explique-me lá como é que resolveu a dificuldade, sempre estou para ver. Tinha aí um cartucho de cardas para as botas e carreguei com elas a espingarda. O quê, carregou a espingarda com cardas? Sim senhor, se calhar não acredita. Acredito, porém nunca tal ouvi. Alguma vez terá de começar a acreditar naquilo que nunca ouviu. Conte lá então o resto, Já eu ia no campo quando me veio uma ideia que esteve quase a fazer-me voltar para trás. O quê? É verdade, lembrei-me de que um coelho apanhado pela carga de cardas ia ficar feito numa pasta de sangue, todo esfrangalhado nem se ia poder comer. E daí, pus-me outra vez a pensar. E descobriu? Descobri, pensando descobre-se sempre, coloquei-me na direcção de uma árvore de tronco grosso que ali havia e esperei. Esperou muito? Esperei o que foi preciso, nunca se espera demais nem de menos, até que veio o coelho, sim senhor, assim que deu por mim largou a correr na direcção da árvore, eu tinha estudado o terreno, e quando ele passou rente, trás, lá vai o tiro. Então não ficou esfarrapado? Qual quê, para que é que eu tinha estado a pensar, não me dirá? As cardas apanharam-no pelas orelhas e pregaram-no ao tronco da azinheira, era uma azinheira, por sinal. Essa é boa. É boa, é, foi só dar-lhe um soco no cachaço e tirar as cardas, que até quando comi o coelho já tinha as botas cardeadas de novo.
São os homens feitos de maneira que mesmo quando mentem dizem outra verdade, e se pelo contrário é a verdade que querem lançar da boca para fora, vai sempre com ela uma forma de mentir, mesmo não havendo o propósito… (Pág.284)

Então outra voz, vem dali, sobre a sombra da noite cai uma sombra que não se sabe donde vem, que ideia lhe lembrou, não está a falar das oito horas de trabalho nem do salário de quarenta escudos, estes é que são os assuntos para que a reunião foi convocada, porém ninguém tem alma de interromper. Eles sempre quiseram baixar-nos a dignidade, e ouvindo eles todos entendem o que foi dito, eles são a guarda, a pide, é o latifúndio e seu dono Alberto ou Dagoberto, o dragão e o capitão, a fominha de dentes e o osso partido, a ânsia e a quebradura. Quiseram baixar-nos a dignidade, não pode ser mais assim, tem de acabar, ouçam todos isto que aconteceu comigo e com o meu pai que já morreu, foi um segredo de nós dois, mas hoje não posso ficar calado, se os camaradas não se convencerem com este caso, então não há mais nada a fazer, estamos perdidos. Uma vez há muitos anos, estava assim uma noite escura como esta, o meu Pai foi comigo, fui eu com ele apanhar bolotas para comermos, não havia nada em casa....já tínhamos o taleigo quase cheio apareceu a guarda...e disse, não vale a pena dizer o que eles disseram, já nem me lembro bem, chamaram-nos nomes... disseram que podíamos ficar com a bolota, mas com uma condição, brigarmos um com o outro para eles verem, e então o meu Pai respondeu que não ia brigar com o seu próprio filho, mas eles disseram que sendo assim íamos para o posto, pagávamos a multa e talvez levássemos uns aconchegos pelas costas abaixo... e então o meu Pai respondeu que estava bem, íamos brigar...e então o meu Pai deu-me um encontrão, e eu a fingir deixei-me cair, era a ver se os enganávamos, julgávamos nós, mas eles disseram que ou brigávamos a sério, a aleijar, ou íamos presos... o meu Pai ficou desesperado, e bateu-me, doeu-me tanto, não foi a força da pancada, e eu dei-lhe troco da mesma maneira, e daí a uns minutos andávamos a rebolar pelo chão os guardas riam como uns perdidos, e uma vez que pus a mão na cara do meu Pai senti-a molhada, não era suor...
Quando demos por nós estávamos sozinhos, os guardas tinham-se ido embora, acho eu que por desprezo, era o que merecíamos e então o meu pai começou a chorar e eu embalei-o como se ele fosse uma criança, jurei que nunca haveria de contar a ninguém, mas hoje não podia ficar calado… (Pág. 336)


(Extracto do Livro «Levantado do Chão» de José Saramago - 1980)


Luis - 2007-04-07


sábado, 26 de setembro de 2009

A «Flor do Campo»...


- Uma flor que abriu em Maio
Se bem abriu, bem fechou...
Uma flor que eu tanto amava
gabou-se que me deixou... –



Era uma dessas manhãs ridentes de Maio, sem que uma aragem suava fizesse tremular a leve folha do álamo. O sol parecia querer mostrar toda a beleza do seu fulgor, mas não tinha forças para rasgar essa cortina feita de trevas, que lentamente se dissipava... Tudo era lindo ! A opulenta Primavera, a mais linda estação do ano, abria as portas do seu guarda roupa, e mostrava-me as mais variadas cores do seu vestido. Após uma leve refeição, pus-me à janela, seguindo com o olhar a maravilhosa Natureza que ali se me oferecia.
O movimento campesino veio despertar-me da letargia em que estava mergulhado; de vez em quando, fazia-se ouvir o latido dos cães nos casais vizinhos, e chegava até mim a saudade, a dor e o remorso...
Um jacto passou bem alto, desenhando no espaço, uma das letras alfabéticas: - um «M».
A mais cruciante dor me cobriu de tristeza, e nos meus olhos apareceram duas lágrimas, que encerravam um passado bem triste: Maria !
Conheci-a no campo, quando ela pura e linda como a luz deste alvor que acabo de contemplar.
Vinha do moinho quando passei por ela, de cartucheira na cinta, e a arma pronta a alvejar qualquer peça de caça que me aparecesse.
Sorrimos os dois, e após um galanteio trocámos algumas palavras de amor, desse amor tão puro como a pureza da alma dessa mulher.
Todos os dias continuava a minha ronda, fingindo caçar e não mais abandonei aquele moinho que me parecia uma sentinela vigilante do nosso amor...

Um dia, no cimo de um outeiro, beijámo-nos pela primeira vez, para que a verdejante campina fosse a verdadeira testemunha do nosso primeiro beijo, e dentre a inúmera quantidade de flores, só os malmequeres pareciam dizer qualquer coisa:
Malmequer criado no campo
delírio da mocidade...
Pelas tuas brancas folhas
malmequer diz-me a verdade...

A continuação dos nossos encontros, fazia nascer dentro dos nossos peitos um amor de Romeu e Julieta, e toda a minha ambição era entrar no moinho.
Certo dia, entrei: Sim, entrei, mas antes o moinho tivesse caído, para matar a peçonha deste grande pecador.
Desse encontro de amor, nasceu o fruto do pecado: uma filha – « A Flor do Campo ».

Um dia a Pátria chamou-me para cumprir o meu dever, e as terras de além-mar, aguardavam com ansiedade os soldados vigilantes.
Depressa me esqueci dessa linda camponesa que se deixou morrer vendo no seu sedutor o maior dos traidores...

Outra mulher veio ocupar no meu coração, o lugar daquela que tinha ficado no moinho, acariciando o fruto do seu puro amor, e duma vil traição.
Alguns meses depois, recebo uma carta de Maria, dizendo:

Luis

São estas as últimas linhas que te escrevo; sinto que a morte se aproxima a passos gigantescos ! Nada quero de ti, como nada me poderias já fazer. Não quero partir para a minha última viagem, sem te pedir que não vejas na minha filha, a filha de uma mulher qualquer. Por mim estás perdoado de todo o mal que me fizeste, mas peço-te que veles pela nossa filha, que lhe dês um nome digno dela, e que sejas melhor para ela do que fostes para mim. Vela por essa inocente, que eu morro confiando no meu pedido.
Maria

Agora, sempre que a Primavera volta, eu choro baixinho... enquanto vou entoando a moda com que eu a costumava enlevar:

Com que letra se escreve... Maria
Com que letra se escreve gratidão
Com que letra se escreve lealdade
Com que letra se escreve...coração...


Luis – 2001-04-04

sexta-feira, 25 de setembro de 2009

Levantado do Chão


Todos os dias têm a sua história, um só minuto levaria anos a contar, o mínimo gesto, o descasque miudinho de uma palavra, duma sílaba, dum som, para já não falar dos pensamentos, que é coisa de muito estofo, pensar no que se pensa, ou pensou, ou está pensando, e que pensamento é esse que pensa o outro pensamento, não acabaríamos nunca mais.

Melhor é declarar que estes anos de João Mau Tempo vão ser os da sua educação profissional, no sentido tradicional e campestre de que um homem de trabalho tem de saber de tudo, tão bom para ceifar como para tirar cortiça, tão destro a valar como a semear, tão de bom lombo para carregar como de rins para cavar. Este saber transmite-se nas gerações se exame nem discussão, é assim porque sempre assim foi, isto é uma enxada de gaviões, isto uma gadanha, e isto uma gota de suor. Ou cuspo branco espesso em tarde de fornalha, ou pancada de sol em cima da ganacha (cabeça), ou jarretes desfalecidos de pouco alimento. Entre os dez anos e os vinte há que aprender tudo e depressa, ou não teremos patrão que nos aceite…
… Ajustou-se para estes patrões Joaquim Carranca, ficando João Mau Tempo a trabalhar à jorna. Tudo junto era uma ridicularia, dava, se dava, para não gemerem de fome constante, e se alguma conveniência ali se achava, era estarem reunidos e terem o benefício de umas hortas para poderem castigar o corpo em domingos e dias santos. Pelo tarde deste período era a soldada de Joaquim Carranca de sessenta quilos de farinha de milho, cem escudos, três litros de azeite, cinco litros de feijão frade, casa e lenhas, e ao fim do ano uma gorjeta consoante. Quanto à soldada dos mais novos, cifrava-se em quarenta quilos de farinha de milho, litro e meio de azeite, três litros de feijão frade e cinquenta escudos.

Era assim mês por mês. Levavam os sacos e saquitéis (saquinhos) até às tulhas, a bilha à adega, media o feitor os víveres, pagava o patrão de escala o numerário, e com isto se haviam de governar os corpos e repor forças onde todos os dias se gastavam. Porém, claro está que nem todas elas se restabeleciam, não queriam mais nada, além de ser fatal que o tempo, passando, faça suas destruições, e daí que as caveiras em demasia se mostrassem por debaixo da pele, para isto se nasce… (Pág. 61)

Depois da terra, a primeira coisa de que Lamberto precisa é de um feitor. O feitor é o chicote que mete na ordem a canzoada. É um cão escolhido entre os cães para morder os cães. Convém que seja cão para conhecer as manhas e as defesas dos cães. Não se vai buscar um feitor aos filhos de Norberto. Alberto é Humberto, feitor é primeiro criado, com privilégios e benesses na proporção do excesso de trabalho que for capaz de arrancar à canzoada. Mas é um criado. Está colocado entre os primeiros e os últimos, é uma espécie de mula humana, uma aberração, um judas, o que traiu os seus semelhantes a troco de mais poder e de algum pão de sobra.
A grande e decisiva arma é a ignorância. É bom, dizia Sigisberto no seu jantar de aniversário, que eles nada saibam, nem ler, nem escrever, nem contar, nem pensar, que considerem e aceitem que o mundo não pode ser mudado, que este mundo é o único possível, tal como está, que só depois de morrer haverá paraíso, o padre Agamedes que explique isso melhor, e que só o trabalho dá dignidade e dinheiro, porém não têm de achar que eu ganho mais do que eles , a terra é minha, quando chega o dia de pagar impostos e contribuições, não é a eles que eu vou pedir dinheiro emprestado, que aliás sempre foi assim, e será, se não for eu a dar-lhes trabalho, quem o dará, eu e eles, eu que sou a terra, eles que o trabalho são, o que for bom para mim, bom para eles é, foi Deus que assim quis as coisas, o padre Agamedes que explique melhor, em palavras simples que não façam mais confusão à confusão que têm na cabeça, e se o padre não for suficiente, pede-se aí à guarda que dê um passeio a cavalo pelas aldeias, só a mostrar-se, é um recado que eles entendem sem dificuldade.

Mas diga-me, senhora mãe, bate também a guarda nos donos do latifúndio? Credo, que esta criança não regula bem da cabeça, onde é que tal se viu, a guarda, eu filho, foi criada e sustentada para bater no povo.
Como é possível, mãe, então faz-se um guarda só para bater no povo, e que faz o povo? O povo não tem quem bata no dono do latifúndio que manda a guarda bater no povo. Mas eu acho que o povo podia pedir à guarda que batesse no dono do latifúndio. Bem digo eu, Maria, que esta criança não está em seu juízo, não a deixes andar por aí a dizer estas coisas, que ainda temos trabalhos com a guarda.
O povo fez-se para viver sujo e esfomeado. Um povo que se lava é um povo que não trabalha, talvez nas cidades, enfim, não digo que não, mas aqui, no latifúndio, vai contratado por três ou quatro semanas para longe de casa, e meses até, se assim convier a Alberto, e é ponto de honra e de homem que durante todo o tempo de contrato não se lave nem cara nem mãos, nem a barba se corte. E se o fizer, hipótese ingénua de tão improvável, pode contar com a troça dos patrões e dos próprios companheiros. É esse o luxo da época, gloriarem-se os sofredores do seu sofrimento, os escravos da escravidão. É preciso que este bicho da terra seja bicho mesmo, que manhã some a remela da noite à remela das noites, que o sujo das mãos, da cara, dos sovacos, das virilhas, dos pés, do buraco do corpo, seja o halo glorioso do trabalho no latifúndio, é preciso que o homem esteja abaixo do animal, que esse, para se limpar, lambe-se, é preciso que o homem se degrade para que não se respeite a si próprio nem aos seus próximos.
E mais. Gabam-se os trabalhadores das pontadas que apanharam nos trabalhos da arroteia. cada uma delas é medalha para vanglórias de taberna, entre o casco e o copo. Já apanhei tantas ou tantas pontadas a arrotear para Berto e Humberto. Estes é que eram os trabalhadores bons, os que, em tempo de chicote, mostrariam envaidecidos os vergões encarnados, e se sangrarem melhor ainda, gabarolas iguais ao rebotalho das cidades que presumiam de virilidade tanto maior quantos mais cavalos duros ou cancros moles adquirissem no comércio da cama alugada.

Ah, o povo conservado na banha ou no mel da ignorância, que nunca te faltaram ofensores. E trabalha, mata-te a trabalhar, rebenta se for preciso, que assim deixarás boa lembrança no feitor e no patrão, ai de ti se ganhas fama de malandro, nunca mais tens quem te queira. Podes ir pôr-te às portas das tabernas, com os teus companheiros de desfortuna, eles próprios te hão-de desprezar, e o feitor, ou o patrão, se lhe deu para isso, olhará para ti com nojo e tu só ficarás sem trabalho, para aprenderes. Que os outros decoraram a lição, vão matar-se todos os dias no latifúndio, e quando tu chegares a casa, e casa isso é, com que cara vais dizer que não arranjaste trabalho, que os outros sim, mas tu não. Emenda-te, se ainda vais a tempo, jura que já tiveste vinte pontadas, crucifica-te, estende o braço para a sangria, abre as veias e diz: este é o meu sangue, bebei, esta é a minha carne, comei, esta é a minha vida, tomai-a, com a bênção da igreja, a continência à bandeira, o desfile das tropas, a entrega das credenciais, o diploma da universidade, façam-se em mim as vossas vontades, assim na terra como nos céus… (Pág.74)

Os homens vão trabalhar para longe, onde se pode ganhar mais algum dinheiro. No fundo, são todos malteses, andam por aqui e por ali, e voltam a casa semanas ou meses depois para fazer outro filho. Entretanto, nas arroteias de carvalheira, por conta dos seareiros, cada pingo de suor é uma gota de sangue perdida, e os desgraçados todo o santo dia penando e às vezes de noite, contam-se as horas de trabalho pelos dedos de três mãos, quando não se tem de ir à quarta mão da besta enumerar o que falta, não se lhes enxuga a roupa no corpo durante toda a quinzena. Para descansar, se tal verbo tem cabimento, deitam-se numa cama de carqueja com palha por cima, e pela noite fora gemem, sujos, pisados, assim não vale, não se pode acreditar no padre Agamedes que vem do seu almoço dominical em casa de Floriberto, e bom almoço foi, como se comprova pelo arroto que ressoa no latifúndio.
É este o poder dos céus. Além disso, note-se, a história repete-se muito. Estão os homens na cabana, derrubados de fadiga, vestidos, uns dormem, outros não podem, e pelas frinchas das canas que fazem as paredes entra uma claridade nunca vista, a manhã ainda vem longe, manhã não é, sai um deles fora e fica tolhido de temor, que todo o céu é um chuveiro de estrelas, caindo como lampiões, e a terra está clara como não a faz nenhum luar. Vêm todos ver, há quem se assuste de medo verdadeiro, e as estrelas descem silenciosamente, a terra vaia acabar, ou enfim começar, já não é sem tempo. Diz um com fama de sábio: movimentos nos astros, movimentos na terra. Estão muito juntos, olham para cima, com as gorjas esticadas, e recolhem na cara suja a poeira luminosa das estrelas cadentes, chuva incomparável que deixa a terra com uma sede diferente e maior.

E um maltês meio tonto que no dia seguinte ali passou, garantiu, por alma da própria mãe ainda viva, que aqueles celestes sinais anunciavam que numa malhada em ruínas, a três léguas dali, tinha nascido, mas doutra mãe, e provavelmente não virgem, uma criança que só não seria Jesus Cristo se não a baptizassem com esse nome. Ninguém acreditou, e graças a este cepticismo se viu facilitada a tarefa do padre Agamedes que no domingo seguinte, na igreja, repleta e ansiosa fora do costume, facilmente zombou dos parvos que julgam que Jesus Cristo vai voltar à terra assim sem mais nem menos. Para dizer o que ele diria cá estou eu que sou padre, tenho ordens e instrução, e estou mandatado pela santa madre igreja católica apostólica romana, entenderam todos, ou querem que lhes abra ouvido no alto da cabeça?... (Pág.80)

Chega o sábado e trás a féria, mas tão mesquinha ela é que não se vê nem sabe como aviar o farnel para a semana seguinte, arrepia-se uma pessoa mesmo não estando frio. Ia a mulher ao merceeiro e requeria: faz favor, fie-me lá o resto do avio, porque esta semana foi ruim por causa do mau tempo. Ou então dizia a mesma coisa por outras palavras, começando da mesma maneira; faz favor, fie-me lá o resto do avio porque esta semana o meu marido não ganhou nada por não haver trabalho. Ou ainda, pondo de vergonha os olhos no balcão, como quem não tem outra moeda com que pagar: senhor, o meu marido para o Verão já ganhará mais ordenado, depois faz contas consigo e paga-lhe o atrasado. E o merceeiro, batendo com o punho na costaneira (lombo), respondia: essa conversa já eu ouço há muito tempo, depois passa o Verão e fica cá o cão a ladrar à mesma, as dívidas são cães, tem graça esta, quem teria sido o primeiro a lembrar-se de tal, isto é um povo de invenções miúdas e necessitadas, imagine-se o rol do merceeiro ou do padeiro, ali escrito em grossos números a lápis, tanto aquele, tanto este, um cachorro pequeno, todo felpa, pode crescer, e esta fera, de dentuça como lobo, dívida grossa já do passado ano. Ou paga, ou corto-lhe o fiado. Mas os meus filhos têm fome, e as doenças, o meu homem sem trabalho, não temos donde nos venha. Quero lá saber, só leva depois de pagar. Ladram por esta terra os cães, ouvimo-los às portas, vêm atrás de quem não pagou, mordem-lhe nas canelas, mordem-lhe na alma, e o merceeiro vem à rua e diz para quem o quer ouvir. Diga lá ao seu marido, o resto já se sabe. Há quem espreite pelos postigos para ver quem é da vergonha, são crueldades de pobre, hoje tu, amanhã eu, não se pode levar a mal… (Pág.82)


(Extracto do Livro «Levantado do Chão» de José Saramago - 1980)

Pedro Lembrando Inês


Em quem pensar, agora, senão em ti?

Tu, que me esvaziaste de coisas incertas, e trouxeste a manhã da minha noite.
É verdade que te podia dizer:"Como é mais fácil deixar que as coisas não mudem, sermos o que sempre fomos, mudarmos apenas dentro de nós próprios?"


Mas ensinaste-me a sermos dois; e a ser contigo aquilo que sou, até sermos um apenas no amor que nos une, contra a solidão que nos divide. Mas é isto o amor: ver-te mesmo quando te não vejo, ouvir a tua voz que abre as fontes de todos os rios, mesmo esse que mal corria quando por ele passámos, subindo a margem em que descobri o sentido de irmos contra o tempo, para ganhar o tempo que o tempo nos rouba.

Como gosto, meu amor, de chegar antes de ti para te ver chegar: com a surpresa dos teus cabelos, e o teu rosto de água fresca que eu bebo, com esta sede que não passa.

Tu: a primavera luminosa da minha expectativa, a mais certa certeza de que gosto de ti, como gostas de mim, até ao fundo do mundo que me deste.


NUNO JÚDICE in Pedro Lembrando Inês

Foto de Carla Salgueiro

quinta-feira, 24 de setembro de 2009

Levantado do Chão


O que mais há na terra, é paisagem. Por muito que do resto lhe falte, a paisagem sempre sobrou, abundância que só por milagre infatigável se explica, portanto a paisagem é sem dúvida anterior ao homem, e apesar disso, de tanto existir, não se acabou ainda. Será porque constantemente muda: tem épocas no ano em que o chão é verde, noutras amarelo, e depois castanho, ou negro. É também vermelho, em lugares, que é cor de barro ou sangue sangrado. Mas isso depende do que no chão se plantou e cultiva, ou ainda não, ou não já, ou do que por simples natureza nasceu, sem mão de gente, e só vem a morrer porque chegou o seu último fim. Não é o caso do trigo, que ainda com alguma vida é cortado. Nem do sobreiro, que vivíssimo, embora por sua gravidade o não pareça, se lhe arranca a pele. Aos gritos… (Pág.11)

De cada vez, sabemos, foi o homem comprado e vendido. Cada século teve o seu dinheiro, cada reino o seu homem para comprar e vender por morabitinos, marcos de ouro e prata, reais, dobras, cruzados, réis, e dobrões, e florins de fora. Volátil metal vário, aéreo como o espírito da flor ou o espírito do vinho: o dinheiro sobe, só para subir tem asas, não para descer. O lugar do dinheiro é um céu, um alto lugar onde os santos mudam de nome quando vem a ter de ser, mas o latifúndio não… (Pág.13)

Este sapateiro é remendão. Deita tombas, cardeia, remancha a obra (faz os acabamentos) quando lhe falta o apetite do trabalho, larga formas, sovela e faca de ofício para ir à taberna, questiona com os fregueses impacientes, e por tudo isto bate na mulher. Por deitar tombas e cardear, por isso também, que dentro de si não consegue encontrar paz, é um homem frenético que ainda bem não está sentado já pensa em levantar-se, ainda bem não chegou a uma terra, já pensa na outra. É um filho do vento, um maltês. .. (Pág.27)

Então chegou a república, Ganhavam os homens doze ou treze vinténs, e as mulheres menos de metade, como de costume. Comiam ambos o mesmo pão de bagaço, os mesmos farrapos de couve, os mesmos talos. A república veio despachada de Lisboa, andou de terra em terra pelo telégrafo, se o havia, recomendou-se pela imprensa, se a sabiam ler, pelo passar de boca em boca, que sempre foi o mais fácil. O trono caíra, o altar dizia que por ora não era este reino o seu mundo, o latifúndio percebeu tudo e deixou-se estar, e um litro de azeite custava mais de dois mil réis, dez vezes a jorna de um homem.
Viva a república, Viva. Patrão, quanto é a jorna agora?. Deixa ver, o que os outros pagarem, pago eu também, fala com o feitor. Então quanto é a jorna? Mais um vintém. Não chega para a minha necessidade. Se não quiseres, mais fica, não falta quem queira. Ai minha santa mãe, que um homem vai rebentar de tanta fome, e os filhos, que dou eu aos filhos?. Põe-nos a trabalhar. E se não há trabalho. Não faças tantos. Mulher, manda os filhos à lenha e as filhas ao rabisco da palha, e vem-te deitar. Sou a escrava do Senhor, faça-se em mim a sua vontade, e feita está, homem, eis-me grávida, pejada, prenhe, vou te um filho, vais ser pai, não tive sinais. Não faz mal, onde não comem sete, não comem oito…. (Pág. 33)
Então, porque entre o latifúndio monárquico e o latifúndio republicano não se viam diferenças e as parecenças eram todas, porque os salários, pelo pouco que podiam comprar, só serviam para acordar a fome, houve aí trabalhadores que se juntaram, inocentes, e foram ao administrador do concelho pedir melhores condições de vida. Alguém de boa letra lhes redigiu a petição, notando as novas alegrias portuguesas e esperanças populares filhas da república, muita saúde e fraternidade, senhor administrador, cá ficamos à espera da resposta. Despedidos os suplicantes… (Pág. 34)
Eis que voa a guarda nacional republicana por esses campos fora. Vão a trote, a galope, bate-lhes o sol nas armaduras, fraldejam as gualdrapas nos joelhos das bestas, ó cavalaria, ó Roldão, ó Farrabrás, ditosa pátria que tais filhos pariu. À vista está a herdade escolhida, e o tenente Contente manda desdobrar o esquadrão em linha de carga, e, à ordem do cornetim, a tropa avança lírica e guerreira, de sabre desembainhado, a pátria veio à varanda apreciar o lance, e quando os camponeses saem das casas, dos palheiros, dos lugares do gado, recebem no peito o peitoral dos cavalos e nas costas por enquanto as pranchadas, até que Ferrabrás, excitado como boi picado de mosca, roda o punho do sabre e cerce corta, talha, pica, cego de raiva, porquê não sabe. Ficaram os camponeses estendidos naquele chão, gemendo suas dores, e recolhidos ao casebre não folgaram, antes cuidaram das feridas o melhor que puderam, com grande gasto de água, sal e teias de aranha. Mais valia morrer, disse um. Só quando a hora chegar, disse outro… (Pág. 35)

Estão agora dois grupos de trabalhadores frente a frente, dez passos cortados os separam. Dizem os do norte. Há leis, fomos contratados e queremos trabalhar. Dizem os do sul. Sujeitam-se a ganhar menos, vêm aqui fazer-nos mal, voltem para as vossa terras, ratinhos. Dizem os do norte. Na nossa terra não há trabalho, tudo é pedra, tojo, somos beirões, não nos chamem ratinhos que é ofensa. Dizem os do sul. São ratinhos, são ratos, vêm aqui para roer o nosso pão. Dizem os do norte. Temos fome. Dizem os do sul. também nós, mas não queremos sujeitar-nos a esta miséria, se aceitarem trabalhar por esta jorna, ficamos nós sem ganhar. Dizem os do norte. A culpa é vossa, não sejais soberbos, aceitai o que o patrão oferece, antes menos que coisa nenhuma, e haverá trabalho para todos, por sois poucos e nós vimos ajudar. Dizem os do sul. É um engano, querem enganar-nos a todos, nós não temos que consentir neste salário, juntem-se a nós e o patrão terá de pagar melhor jorna a toda a gente. Dizem os do norte. Cada um sabe de si e Deus de todos, não queremos alianças, viemos de longe, não podemos ficar aqui em guerras com o patrão, queremos trabalhar. Dizem os do sul. aqui não trabalham. Dizem os do norte. Trabalhamos. Dizem os do sul. Esta terra é nossa. Dizem os do norte. Mas não a querem fabricar. Dizem os do sul. Por este salário, não. Dizem os do norte. Nós aceitamos o salário. Diz o feitor. Pronto, temos conversado, arredem lá para trás e deixem os homens pegar ao trabalho. Dizem os do sul. Não enregam. Diz o feitor. Enregam, que mando eu, ou chamo a guarda. Dizem os do sul. Antes que a guarda chegue, correrá aqui sangue. Diz o feitor. Se a guarda vier, ainda mais sangue correrá, depois não se queixem. Dizem os do sul. Irmãos, dêem ouvidos ao que dizemos, juntem-se a nós, por alma de quem lá têm. Dizem os do norte. Já foi dito, queremos trabalhar.
Então o primeiro do norte avançou para o trigo com a foice, e o primeiro do sul deitou-lhe a mão ao braço, empurraram-se sem agilidade, rijos, rudes, brutos, fome contra fome, miséria sobre miséria, pão que tanto nos custas. Veio a guarda e separou a briga, bateu para um lado só, empurrou à sabrada os do sul, amalhou-os como animais. Diz o sargento. Quer que os leve todos presos? Diz o feitor. Não vale a pena, são uns desgraçados, segure-os aí um pedaço, até desanimarem - diz o sargento. Mas há ali um ratinho com a cabeça rachada, houve agressão, a lei é a lei. Diz o feitor. Não vale a pena, meu sargento, sangue de bestas, tanto faz do norte como do sul, é o mijo do patrão.

Diz o sargento. Por falar em patrão, estou precisado de um bocado de lenha.

Diz o feitor. Lá lhe irá uma carrada.

Diz o sargento. E umas poucas telhas.

Diz o feitor. Não será por causa disso que dormirá ao relento.

Diz o sargento. A vida está cara.

Diz o feitor. Mando-lhe uns chouriços… (Pág. 38)

E os fados? Correm os lobisomens por encruzilhadas, má sina que lhes vem, meus senhores, não saberei de que mistérios, são encantamentos, em dia certo da semana saem de suas casas e na primeira cruz dos caminhos despem-se e rojam-se no chão, espojam-se, transformando-se na causa do rasto que por ali há. Qualquer rasto, ou só de animal mamífero? Qualquer rasto, meu senhor, que até uma vez houve um homem que se transformava em roda de carro, andava por aí a girar, a girar, uma aflição, mas o mais de costume é tornarem-se bichos, como foi o caso muito falado e verdadeiro daquele homem, não me lembro é o nome, que morava com a mulher no Monte do Curral da Légua, para as bandas da Pedra Grande, e o fado dele era sair todas as noites de Terça Feira, mas esse sabia do seu estado e por isso avisava a mulher que nunca abrisse a porta quando ele estivesse por fora, ouvisse ela o que ouvisse, e nessas alturas eram gritos e barulhos que faziam gelar o sangue a um cristão, ninguém era que dormisse, mas uma vez a mulher encheu-se de coragem, é que as mulheres são muito curiosas, tudo querem averiguar, e resolveu abria a porta. Que foi que viu? Ai Jesus, viu na sua frente uma enorme cabeçorra deste tamanho, assim, e vai ele atirou-se a ela como um leão para a devorar, sorte foi ela ter conseguido fechar a porta, porém não tão depressa que o porco, ao abocar, lhe não tivesse arrancado um bocado da saia. Ora agora imagine-se o horror da infeliz, quando o árido voltou para casa, já de madrugada, trazia na boca o bocado de pano arrancado,. O que valeu é que tudo ficou explicado, ele contou-lhe que de todas as vezes que saía se transformava num animal, e daquela fora um porco, e que lhe podia ter feito mal, para a outra vez não abrisse a porta, que ele não podia responder por si. Grande caso, a mulher foi falar aos sogros, que ficaram muito incomodados por filho seu ter dado em lobisomen, não havia outro na família, e então procuraram uma virtuosa que lá fez as rezas e os esconjuros próprios para estes acidentes e disse que lhe queimassem a copa quando ele estivesse transformado em lobisomen, que nunca mais tornaria, e assim foi, remédio santo, queimaram-lhe o chapéu e curou-se. Seria porque sendo o mal na cabeça, sarava-se queimando o chapéu ? Isso não sei, que a mulherzinha não me disse, mas ainda lhe conto outro caso. Aqui bem perto do Ciborro viveu há pouco tempo um casal numa quinta, são tudo acontecidos de entre marido e mulher, porque será? Esses criavam galinhas e outros animais de capoeira, e então todas as noites o marido, este era todas as noites, levantava-se da cama, ia para o quintal e punha-se a cacarejar, imagine para o que lhe daria, quando a mulher o espreitava do postigo via-o transformado numa galinha muito grande. Do tamanho do porco. Ah, não acredita, então ouça o resto. Este casal tinha uma filha como a filha ia casar, mataram muitas galinhas para a boda. Era a riqueza deles, mas nessa noite a mulher não sentiu levantar-se o marido nem o ouviu cacarejar. Não calcula o que tinha sucedido, o homem foi ao sítio onde tinham matado as galinhas, pegou numa faca, ajoelhou-se ao pé do alguidar e enterrou a faca na garganta, ali se ficou. Quando a mulher deu com a cama vazia e foi à procura do marido, encontrou-o já sem vida e o sangue às golfadas. São os fados, é o que lhe digo. (Pág. 43)




(Extracto do Livro «Levantado do Chão» de José Saramago - 1980)

Recordando...«Sem asas para voar»...


Pensamentos do Padre Américo

« É necessário que o mundo não pasme do que me dão..Mas,sim, que se aflija com o que me falta. É só a fome e sede de Justiça que eu tenho, que me leva... a mostrar a minha chapa de mendigo, só isso »
« Ai se tu soubesses como é lindo o Evangelho dos pobres...Se tu tivesses a experiência estupenda que este Evangelho tem...os montes caminhariam à tua frente e tu, silencioso, com a chave do mundo na mão, cantarias vitória...»
- http://casadogaiato.no.sapo.pt/


Já lá vão 65 anos quando, numa tarde amena de Verão, bati ao portão da jovem Casa do Gaiato, ainda a funcionar nas instalações da antiga Casa Pia, em Paço de Sousa.

«Pai» Américo não estava, e o «Tiroliro», porteiro de então, aconselhou-me a voltar...

Eis como «Pai» Américo escreveu n' O Gaiato a minha história:


«Em um destes últimos dias, veio dar à nossa porta um rapaz abandonado, de 15 anos de idade. Vinha soberanamente andrajoso. Trazia 12 tostões de esmolas. Pediu de comer.

Tinha estado de véspera e fora-se embora à noitinha por não haver sido escutado, tendo dormido debaixo das estrelas, como ao depois confessara. Havia no semblante do nosso rapaz, sinal de quem estava afeito à vida em comunidade: - «Eu já andei num colégio» - disse.

Subimos a escadaria. Mandei sentar. Quis saber. Entrara aos 9 anos para um asilo, órfão de mãe. Entrementes perde o pai. Aos 14, é despedido por virtude dos estatutos.

Vagueou sozinho nas ruas do Porto, sem asas para voar. Procura o seu elemento: - família, amigos, lareira. Ninguém!

É «um exposto sem medalha». Madastra, fora a «letra da regra»; madastra a lei do mundo que o ignora. «Estrangeiro na Pátria», em demanda do que é seu! Oh mundo, acorda que já é tempo!

Ficou em nossa Casa. Chamou-se o roupeiro que o vestiu, mai-lo cozinheiro que lhe deu de comer. É o mais nobre programa que no mundo se conhece: dar de comer a quem tem fome e vestir os nus. É a matéria certa do tribunal de contas, quando o Justo Juiz as vier tomar a cada mortal!

O pequenino condenado ao desprezo, agora no que é seu, parece outro. Era o tempo das colheitas. Dezenas dos nossos, passam para oe celeiros com feixes de abundância, a riscar o espaço com gestos de alegria.

Ele olha, sorri, quer ser camarada: «Nós tínhamos uma quinta mas não era assim; eram criados».

Entrou no regimento. Formou na linha dos trabalhos. Começa a achar gosto.

- Ah! Nós lá não era isto.

- Então que fazias tu?

- Nós tínhamos aula e íamos òs enterros!»


Aqui encontrei o «meu elemento», no dizer de «Pai» Américo. Encontrei uma família, amigos, uma lareira.

Depois, constituí a minha própria família e, ao longo destas dezenas de anos, depois de ter sido copeiro, do campo, e aprendido a profissão de tipógrafo, colaborei no primeiro número d' O GAIATO impresso na nossa tipografia, em Paço de Sousa, na sua composição e paginação.

Tendo adoecido, «Pai» Américo colocou-me como ajudante do Júlio Mendes - chefe de tipografia. Mais tarde transitei para a Administração do nosso jornal, onde ainda hoje me ocupo.

Tenho presente a partida de «Pai» Américo para o Céu. Também a tristeza que pairou em todas as Casas do Gaiato, ou melhor, em toda a Obra da Rua, com a pedagogia que orienta a sua educação a ser posta em causa - a comunicação social foi lesta e criou um escarcéu terrível...

Tudo passou, e quem de direito, arquivou. Esta tribulação a que sujeitaram a Obra leva-me a dizer: «Olhai e vede como Deus é bom!»

Agora, passados tempos, a Obra da Rua foi contemplada com o Prémio da Educação 2009, pela Fundação Gulbenkian. E cá está como a imprensa «reconheceu» este prémio, calando-se e ficando queda e muda.

Dizer-vos como fiquei feliz, não sei e não tenho palavras. Alguém viu, à Luz do Espírito Santo, como as Casas do Gaiato tentam fazer de cada rapaz um homem.

Graças a Deus, a «Pai» Américo e a todos os nossos Padres, que se gastam ao serviço do Pobre e do abandonado, a Casa do Gaiato fez de mim um homem e um ser útil à sociedade.

Bem-hajam, pois, e até breve.


Manuel Pinto in «O GAIATO» Nº 1709 de 12 de Setembro de 2009