segunda-feira, 26 de outubro de 2009

O tocador do eterno sorriso


Já aqui tínhamos dado destaque ao falecimento dessa grande figura da Viola Campaniça que foi Francisco António, como reconhecimento e homenagem, aliás bem merecida. Tivemos entretanto a agradável surpresa de ver no nosso Blog um comentário de reconhecimento de sua neta, Sophia Vilhena, residente algures no Brasil. Deparando-se-nos agora no Diário do Alentejo um registo magnífico do jornalista João Matias sobre este saudoso alentejano, não resistimos em vir aqui deixá-lo.

Francisco António formou com Manuel Bento e Perpétua Maria o trio responsável pelo ressurgimento da viola campaniça nos anos 80 e 90; conhecedor do reportório tradicional, tocou e deu voz às gravações que José Alberto Sardinha deu a conhecer ao País; foi o primeiro professor de Pedro Mestre
João Matias texto


Com o desaparecimento de Francisco António - que faleceu na semana passada em Ourique-Gare - perdeu-se um dos dois maiores tocadores de viola campaniça da sua geração. O outro é Manuel Bento.

Francisco António, de 81 anos, era natural de Aldeia Nova, Ourique, e lá viveu até 1970, quando a população da localidade se viu obrigada a mudar por causa da barragem do Monte da Rocha, que se encheria no ano seguinte. Era o mais novo de 10 irmãos e herdou do pai o gosto pela música. "Era melhor a cantar do que a tocar", testemunha o seu sobrinho Manuel Bento (mais velho três anos do que o tio), acrescentando que a vontade de tocar só lhe surgiu por volta dos 15 anos: "Um dia, o pai dele, que era meu avô, decidiu oferecer-me a sua viola porque o filho não a usava. Só que pouco depois o Francisco António quis aprender a tocar e o pai foi obrigado a comprar outro instrumento".

Bailes de Aldeia Nova
Os bailes da Aldeia Nova eram famosos, pois havia vários tocadores: "Éramos sete para pouco mais de 120 habitantes", assegura Manuel Bento, e muita gente vinha dos montes em redor para participar.
Francisco António cantava muito bem e, para além da campaniça, também tocava harmónica, ou "flaita", como se diz em alguns lugares. E não se ficava pela sua aldeia, saindo pelos povoados das redondezas. "Estava sempre pronto para a música, tinha uma disposição incrível para tocar e cantar", assegura o sobrinho. E, às vezes, nem era preciso levar instrumentos, pois era comum os montes e tabernas da região possuírem uma viola para que quem chegasse pudesse tocar e, claro, cantar. Nesse tempo muita gente tocava e havia homens que deixaram nome pelas feiras, tais como Norberto "Cego", Francisco Maria Amaro ou "Laranjinha", todos mais velhos que Francisco António.

Tocadores separados
Um dia, porém, Aldeia Nova perdeu os seus habitantes, que tiveram de se mudar por causa da barragem, e os tocadores espalharam-se por diversas localidades. Francisco António foi para Ourique-Gare, Manuel Bento para a Funcheira, outros estabeleceram-se em lugares diferentes. Esta separação, aliada à generalização da harmónica e do harmónio, levaram a campaniça a entrar em decadência. Francisco António não parou de tocar, mas fazia-o apenas para si. Vivia de comprar e vender ovos, fazer pão mas, a par da sua motorizada, não gostava de se separar da viola. Nesse tempo a viola alentejana era, por estas bandas, apenas conhecida pela "viola". Foi Ernesto Veiga de Oliveira que lhe deu o nome de "campaniça", por ser do campo e para a distinguir, por exemplo, da braguesa, que é da região de Braga, e de outras. O nome chegaria ao Alentejo através de José Alberto Sardinha, já nos anos 80 do século XX.

A campaniça é descoberta
Com a morte dos tocadores mais velhos e a paragem dos mais novos, a viola alentejana quase deixa de se ouvir. Até que, em finais da década de 70, o jornalista da RDP, Rafael Correia, a "descobre". Numa das suas notabilíssimas edições do programa "Lugar ao Sul" (que inexplicavelmente cessou em Agosto deste ano), grava com os mestres tocadores. As velhas modas são divulgadas para o País inteiro e pouco depois, no início dos anos 80, o estudioso José Alberto Sardinha encontra Francisco António, Manuel Bento e todos os que pode localizar. Francisco António é fundamental para este trabalho, uma vez que conhece muito bem todo o cancioneiro e demonstra grande disponibilidade para o gravar. "Ele deixava tudo para tocar e cantar", confirma Pedro Mestre - o melhor e mais famoso tocador de campaniça da actualidade. Foi com Francisco António que Pedro Mestre aprendeu os primeiros acordes da viola de arames: "A minha mãe e a minha madrinha levavam-me a casa dele para aprender e ele ensinava-me com muito gosto", lembra.

O disco
Do trabalho de Sardinha nasceu o disco "Viola Campaniça, o outro Alentejo". Nesse vinil também aparece a voz de Perpétua Maria, a esposa de Manuel Bento. O disco junta um trio que se tornaria famoso nos anos seguintes: Francisco António, Manuel Bento e Perpétua Maria. Os três rompem as fronteiras regionais e saem pelo País inteiro a cantar. A campaniça, que chegara à rádio através do programa de Rafael Correia e do disco de José Alberto Sardinha, chegava agora aos palcos. A televisão vem depois, no programa "Cornélia". É então que surge outra pessoa muito importante para a divulgação da campaniça e, consequentemente, para Francisco António: José Francisco Colaço Guerreiro, presidente da Cortiçol e autor do programa "Património" da Rádio Castrense. Partindo do disco, ele vai à procura, não só dos protagonistas da gravação, mas de todos os tocadores que consegue localizar. Encontra-os, grava e divulga as suas músicas na rádio. Com Francisco António tem várias histórias: "Quando o conheci, ele já ia nos 60 anos. Perguntei-lhe se havia outros tocadores e ele disse-me que tinha um sobrinho chamado Manuel Bento que morava na Funcheira. Óptimo, pensei, há alguém mais novo. Meti-me no carro e pus-me a caminho da aldeia. Logo à entrada da povoação dei com um senhor já de uma certa idade e perguntei-lhe se conhecia o tal Manuel Bento. ‘Conheço', respondeu-me, ‘sou eu'. Fiquei surpreendido pois não imaginava que o sobrinho fosse mais velho do que o tio".

O trio desfaz-se

Em 1997 dois golpes duros desfizeram o trio: primeiro morreu Perpétua Maria, esposa de Manuel Bento e cinco meses depois deram-se as terríveis cheias no Alentejo, que expulsaram da Funcheira o mestre que enviuvara há pouco. Os desgostos fizeram com que Manuel Bento parasse de tocar, o que levou Francisco António a encontrar novos parceiros - Mariana Maria, Maria Inácia, Alice Maria, António José Bernardo e Amílcar Silva passam a tocar e cantar com ele, não deixando morrer o "Grupo de Viola Campaniça". Manuel Bento regressará mais tarde, quando Francisco António já dava sinas da doença que lhe consumiria a última dúzia de anos de vida: Alzheimer. O grupo mantêm-se até hoje, renovado com o extraordinário talento de Pedro Mestre e mantendo a participação de Manuel Bento. Lucinda Mestre e Evangelina Torres (mãe e madrinha de Pedro), Ana Valadas e Márcio Isidro são os outros elementos desta formação que equilibra juventude e inovação, experiência e tradição. O legado de Francisco António está vivo.

Eterno sorriso
Regressando à década de 90, o tocador de Ourique-Gare está com Alzheimer mas não perde a disponibilidade e muito menos o prazer de tocar e cantar. Pedro Mestre prossegue a aprendizagem com Manuel Bento mas nunca deixa de visitar o seu primeiro professor: "Francisco António era do melhor que pode haver na natureza humana - quando chegava a casa dele com a viola, largava tudo e arranjava tempo para tocar. E sempre com um sorriso".

Colaço Guerreiro acentua a faceta: "Ele tinha um enorme entusiasmo para tocar. Sempre que eu lhe pedia para ir a algum lado, punha-se logo a contar os dias que faltavam para o espectáculo".

O mestre foi sepultado em Casével, sede da freguesia de Ourique-Gare, a aldeia do concelho de Castro Verde onde passou a última metade da vida. Apesar de não ser natural do município, Castro Verde sempre lhe deu muita atenção e homenageou-o, tendo sido nele que se inspirou quando colocou um tocador de viola campaniça no monumento ao cante que se encontra à entrada do lugar onde agora repousa.

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