quarta-feira, 21 de outubro de 2009

«A Saga de um Pensador»



Um Preço a Pagar

«Há sempre um preço a pagar, para os que querem pensar»



- Aula de faculdade de Medicina: imagens de corpos nus, dissecados; a foto de um cérebro, saturado de reentrâncias, como riachos que sulcam a terra;
- Novos alunos, ansiosos (1ª Aula de Anatomia): para desvendar os segredos do objecto mais complexo da ciência: o Corpo Humano;
Chegam os professores e Técnicos de Anatomia – um silêncio gélido invade o grupo. Os Professores convidam os 60 alunos a acompanhá-los. Vêm 12 cadáveres completamente nus, deitados erectos com o peito e a cara voltados para o tecto, cada um estendido sobre uma alva mesa de mármore branco. O cheiro a formol usado para conservar os corpos, é quase insuportável.
Cada grupo de 5 alunos é encarregado de dissecar e estudar um cadáver ao longo do ano. Teriam de rebater a pele, separar os músculos, encontrar o trajecto dos nervos e das artérias. Teriam de abrir o tórax e o abdómen e vasculhar com precisão a cor, o tamanho, a localização e a disposição de cada órgão interno.
- O Dr. George, especialista em Harvard, reconhecido internacionalmente, com mais de 50 artigos publicados em revistas científicas, um cientista notável na sua área, escondendo-se atrás do seu curriculum de apresentador, apresentou o programa da sua disciplina.
Após a introdução, começou desde logo a revelar algumas técnicas de dissecação da pele, músculos, artérias e nervos. Tudo decorria normalmente como em todos os anos, até que um aluno subitamente levantou a mão. O seu nome era Marco Pólo.
O Dr. George não gostava de ser interrompido. Não era um amante dos debates. Cada aluno teria que ruminar as suas dúvidas até ao fim da aula, para depois lhe fazer as perguntas, ou aos outros três Professores e Técnicos que o auxiliavam. Desprezou o gesto de Marco Pólo. Para não fazer papel de parvo, o jovem baixou a mão.
Marco Pólo era intrépido e determinado. Cinco minutos depois de ouvir falar sobre técnicas e peças anatómicas, não suportou o calor da sua ansiedade. Novamente, levantou a mão. O Professor irritado com a sua ousadia, explicou que as dúvidas deveriam ser colocadas sempre no final de cada aula. E disse que abriria uma única excepção. Fez um gesto com as mãos para que Marco Pólo falasse, como se lhe prestasse um enorme favor;

Com sinceridade cristalina, Marco Pólo perguntou:
» Qual é o nome das pessoas que vamos dissecar?
O Dr. George recebeu a pergunta como um golpe. Olhou para os Professores que o auxiliavam, meneou a cabeça e balbuciou: «Há sempre algum estúpido na turma». Com voz solene respondeu:
« Estes corpos não têm nome!
Marco Pólo passou os olhos pelos cadáveres e comentou: «Como não têm nome? Eles não choraram, não sonharam, não amaram, não tiveram amigos, não construíram uma história?»
A plateia ficou muda. O Professor mostrou-se intrigado. Sentiu-se desafiado. Então troçou do aluno publicamente:
» Olha rapaz, aqui só há corpos sem vida, sem história, sem nada. Ninguém respira, ninguém fala. E você está aqui para estudar Anatomia. Sabe que há muitos médicos medíocres na sociedade porque não se dedicara, a esta matéria? Se não quer ser mais um deles, deixe -se de filosofias e não interrompa a minha aula ».
Mas Marco Pólo teve fôlego para retorquir:
» Com o vamos penetrar no corpo de alguém sem saber nada sobre a sua personalidade? Isso é uma invasão !
E, para picar o Professor, resolveu filosofar. Emendou.
» Um homem sem história é um livro sem letras.
Interrompendo-o, o Dr. George foi directo e agressivo:
» Vamos parar com essa filosofia barata! Se você quer ser um detective que investiga a identidade dos mortos, escolheu a faculdade errada. Siga a carreira policial.
Em seguida o professor encerrou o assunto, dizendo:
» Esses cadáveres não têm história. São mendigos, indigentes, sem identidade e sem família. Morrem pelas ruas e nos hospitais e ninguém reclama a existência deles. Não seremos nós que a reclamaremos.
Além de humilhar publicamente o seu intrépido aluno, ele desafiou-o com sarcasmo. Fitou-o e disse-lhe:
» Se você quiser identificá-los, procure informações na Secretaria do departamento. Ah! E se, por acaso encontrar uma história interessante sobre alguns destes indigentes, por favor, traga-nos para que possamos ouvi-la.
Com isto Marco Pólo calou-se.
Marco Pólo saiu daquela aula com a impressão de que «há um preço a pagar para os que querem pensar».


Era mais confortável calar-se, seguir o roteiro curricular e ser mais um aluno na multidão. Todavia, o conforto de se calar geraria uma dívida impagável com a sua própria consciência... Tinha de fazer uma escolha. (até página 44)




(in Livro «A Saga de um Pensador» de Augusto Cury)

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